19 de nov. de 2016

VACAS NA RUA

Três tarjas pretas azuis não é nem uma mini intenção de suicídio mais. Tomei já tanta droga assim que, a resistência me fez acordar em duas horas para continuar a ouvir música triste.
Uma técnica: tentar a acabar com o presente dia é mais inteligente do que tentar acabar com a própria vida.
Ainda assim, o vício de voltar a olhar o telefone o tempo todo não cessa. Ele não toca, não vibra, e duvido que vibrará nos próximos vinte minutos quando eu olhar de novo.

Ao contrário dos ansiolíticos que não confortam, a besta me conforta. Sim, uma besta, uma besta muda – minha gata siamesa que se chama tatyana rumanova lebedeva, assim como a grande saltadora russa que ainda hoje é recordista mundial do salto triplo em pista coberta. Minha gata é minha melhor amiga, ela nunca disse nada, é meu relacionamento mais duradouro, temos uma amizade de oito anos, a que todos os dias em que estou miseravelmente melancólico, a gata se torna mais presente, fica mais carinhosa, tenta fazer com que eu siga em frente, por mim e por ela. Isso diz um pouco sobre a minha relação com os seres humanos.

Isso é muito bom, pois são quase 3 da manhã e não conheço ninguém que está disposto a me ouvir para eu dizer que desejo morrer. Por outro lado é bom. O esporte me ensinou muitas coisas, é melhor retirar-se no auge, não na decadência, o que dizer de Fabiana de Almeida Murer, que aposentou-se no mesmo ano em que bateu o recorde sul-americano, marca essa que é uma das dez melhores da história?

Espere até fevereiro, fevereiro é um bom mês, o pálido fevereiro, assim não se estraga o natal de ninguém, o réveillon de ninguém, sim, até lá você terá emprego, o tratamento com o lítio terá respondido bem melhor, terei meu estimado garoto louro que tanto gosto de volta com um pouco de sorte, estarei em forma para competir em março, tudo estará bem, estarei em um mini auge, não há necessidade de fazer alarde, então. Outro livro, sim, outro livro. Da última vez que dei um livro de presente de aniversário para a minha mãe ela disse “outro livro, Hugo?”. As pessoas não gostam de livros. O que me faz detestar o transporte público, pessoas lendo jojo ou “a culpa é das estrelas” e essas pessoas lamentavelmente estão se achando cultas apenas por ler, ler qualquer coisa. Sim, terminei de escrever outro livro. Outro de livro de poesia. Se estou orgulhoso dele? Sim, muito. Mandei o arquivo para uma dezena de pessoas. Sim, eu escrevo para uma dezena de pessoas e. você está feliz por terminar mais um livro, Hugo? e por que eu deveria estar feliz? Ana Cristina Cesar se jogou do oitavo andar pouco depois de publicar o clássico “A teus pés”, por que eu deveria estar feliz?

Talvez tudo estivesse bem se eu estivesse na índia. Vacas, elefantes na rua, mas soltaram as vacas aqui, bem debaixo dos meus bigodes.

Das vacas vem o bife. Sim, eu consegui. Consegui competir no último 06 de novembro. Mesmo melancólico, eu consegui. Consegui lançar um dardo de metal que mede 2,43m e pesa 800g a uma distância de 34,37m. Não é difícil. Treine por nove meses e você também consegue. Ganhei uma medalha de bronze. No salto em distância, fiz um salto de 5,80m. Também não é difícil. Outra medalha de bronze. No fim das contas, não ganhei um centavo, tenho de aturar a antipatia de um monte de gente durante os treinos e as competições, mas afastei alguns fantasmas da minha cabeça. Sim, pois quando treino, penso menos na morte e na condição humana.

Quando você vai publicar seu livro novo, Hugo? não faço ideia. Continuo tendo prazer em escrever, mas não tenho mais o menor tesão em publicar. Primeiro, porque não tenho público (O meu texto tem público, mas o Hugo Guimarães é que não tem). O meu texto é impopular e eu sou uma pessoa impopular. Não é pose, eu sou uma pessoa originalmente impopular. É difícil entrar em outra jornada para publicação, conseguir, ter um trabalhão para divulgar um lançamento, e no dia não aparecer quase ninguém. Não quero mais esse constrangimento para mim, nem para o editor. “Moon drungo”, meu livro novo de poemas é bom, gosto muito dele. Vou inscrevê-lo em editais no ano que vem. Talvez eu publique eu mesmo, em papel reciclado, ou em papel de embalar pão francês, em 100 cópias.

Gente recolhendo bosta de vaca, de elefante por toda parte na vizinhança. Estou na casa da minha mãe aos 30, esperando um novo emprego. Não ganhei um centavo pelas medalhas do bife. Apenas ganhei e mantenho um belo corpo musculoso, mas parece que meu belo corpo, meu pau grosso, não é suficiente para compensar os problemas na minha cabeça, meu namorado me pediu um tempo, não sei se ele vai voltar. Estou com medo de sair na rua para ir comprar pastel, medo de ser atingido por uma vaca, de pisar em bosta de vaca.

No ponto de ônibus, no trajeto de duas horas da casa da mamãe até a pista de atletismo, a humilhação dos 30 anos de idade martela minha cabeça. Nada deu certo na minha vida desde então e não adianta começar nada de novo agora. Não se começa nada aos trinta. Se começa aos vinte, daí se fica bom aos trinta. A única coisa que comecei bem antes dos vinte, foi escrever. Eu deveria ter começado a tocar piano aos treze, ou começado a jogar tênis. Devo me lamuriar por minha literatura nunca ter me rendido absolutamente nada? Não, devo apenas aceitar que minha literatura apenas não é boa o bastante, e que joguei fora quase duas décadas da minha vida para conquistar duas dezenas de leitores, no máximo.

Na Bolívia ainda tem uma reserva bem grande de lítio, ainda bem. Depois da última crise que tive dez dias atrás, não tenho parado mais de tomar meu lítio. Hoje me sinto apenas um pouco triste por causa do cotidiano em si, mas há sim uma base de equilíbrio que me protege da inconsequência, que me garante que acordarei vivo pelo menos amanhã. Usam lítio para baterias, mas logo inventarão baterias mais modernas. Assim vai sobrar bastante lítio pra tratar gente louca, sempre vai haver muita gente louca, e vai haver muito lítio.


XOXO