9 de jul. de 2019

JULIA

Leia abaixo "Julia", um conto inédito de Hugo Guimarães:

“Julia”

            Ipswich, Inglaterra, 1963:

            Sabe aquela canção de Lennon & McCartney chamada ‘Julia’? Pois bem, aquela Julia sou eu, e não a Julia Lennon como muitos acreditam. Bem, eu também devo dizer que fui estuprada e assassinada antes de tudo e você sabe como é isso, Hugo? Pois nem queira saber. Não conhece essa clássica canção dos Beatles? Bem, é que estamos todos tão habituados a chamar qualquer canção dos Beatles de clássico que. Bem, talvez não seja essa um clássico visto que você muito provavelmente não a conheça se você não é um fã dos Beatles mas. Bem, é bem melhor do que ser a ‘Jude’ não? Ei Jude... Ei Jude o quê? Hehehe quá quá quá. Aquela ‘Jude’ sempre me faz pensar em uma mulher velha, além do mais eu não gostaria de ser responsável pela pior canção dos Beatles, um grande desapontamento para mim seria, mais do que me tornar a mulher velha que nunca fui.

            Era exatamente assim. Metade do que os garotos dizem, não faz sentido. Ah sim, o primeiro verso da canção ‘Julia’ dos Beatles é assim: ‘Half of what I say is meaningless’; prosseguindo, eu diria ‘Metade’? Não, não diria, mas. Muito do que os garotos dizem não faz sentido. Sentido algum. Era por causa do meu suor, meu suor pós-treino, do treino de voleibol e. O como eu costumava ir para casa, ir em direção à parada do ônibus com aquele suor ainda em mim, e com a minha mochila nas costas, essa com um chaveiro com bichinho de pelúcia pendurado, balançando enquanto eu andava, e meu cabelo, voando por cima da cabeça com o vento e. Aquele suor lentamente secando sob as minhas panturrilhas, minhas panturrilhas nuas, á mostras, e os garotos as vendo... deus... Céus...

            São Paulo, Brasil, 1995:

            Sendo eu feminino, parte louco, tendo de fingir ignorar um homem rude que me olha ele rude eu feminino, ele que eu vejo com o rabo do olho; Sento no lugar do ônibus onde eu melhor posso me esconder, e tento esconder o meu rosto de doze anos de idade com o boné.
            Acho que essa face sugou a barba. E não vai vomitar de volta. Então vou eu evoluir á paranoia quando adulto, me punindo com fome para combater essa ascendência indígena que faz dessa face um tanto redonda. Fome, só fome para sugar essas curvas dela. E o terror de ser um homem e ter de provar que sou um homem fez meus testículos retraírem-se, esses que viraram ovários, “Ovários ao coração, pelo menos”. Diga algo, a esse jovem garoto que nada vê, nada percebe. Sim, mesmo assim devo dizer que pensamentos destes andavam comigo, naquele período bem breve em que eu me sentia como uma garota.

            Ipswich, Inglaterra, 1963:

            Visto que eu era uma lésbica, e uma lésbica nos anos de 1960, nos interiores da velha Inglaterra, eu sempre quis me mudar para Londres. E eu quis ainda mais quando me apaixonei pela Carla. Sim, ela era brasileira, por isso tinha esse nome estranho; Londres e mais que isso, Londres com a Carla. Décadas atrás, tinham já construído muitos prédios em Londres, não tão altos, é claro e. Droga... Os apartamentos eram tão pequenos e caros para nós, garotas que éramos, tão jovens e. Mudar-se, mover-se, fugir, fugir, eu tinha de fugir, queria pelos infernos deixar a casa dos meus pais e. Essa é a natureza do homem, não? A viagem, quero dizer. Desde que as primeiras histórias escritas pelo homem falavam tanto de viagens, não? A Odisseia, Camões, deus... Acho que não estou só; Muitos dos homens querem apenas dar o fora de onde estão de onde pertencem, não há nada de nobre nisso; digo, nada de nobre em desbravar, enfrentar o mar, com chapéus bonitos, espadas, nada de nobre, era apenas um desejo muito primitivo de ir embora, dar o fora, ou até desaparecer, eu estava preocupada, preocupada com o mar que eu estava por enfrentar, Carla, aquela exótica garota; Eu queria fugir de casa para me juntar mas. Eu era jovem e verde, mas eu sabia que eu não podia fugir de quem eu era. Tampouco desaparecer.

            São Paulo, Brasil, 1995:

            Eu evito olhar para o lado de fora, pela janela do ônibus. Por gosto, evito olhar para qualquer lugar onde alguém haja. Sei, sei que essa extrema vaidade embaixo do boné é fêmea, e isso só gera um sentimento estranho, um contorno, sombra, cheiro, alma sei lá, de garota em mim mas. Você não consegue perceber que esse boné é talvez muito grande para a sua já grande cabeça? Tem uma propaganda desenhada nele de algo que você sequer conhece, já lhe ocorreu? Ah, sei, você gostou da cor (...). A parte dura desse boné barato também não é flexível e a parte de trás não é fechada, tem aquela bandagem de plástico que ajusta ao tamanho da cabeça, não consegue ver o quanto você fica ainda mais feio com ele? Melhor seria não usar nada na cabeça. Ah, esqueci que seu corte de cabelo consegue ser ainda pior e isso você sabe bem por que, não é? Sim, você ainda tentava não cortar mais o cabelo do jeito que o seu pai mandava; algo grosseiro e tanto ilógico, posso bem ver nessa imagem: um garoto afeminado com um cabelo mal cortado por uma cabeleireira rancheira que não deve conhecer mais do que duas formas de cortar os cabelos de um garoto e não havia uma cabeleireira melhor naquela lamentável vizinhança suburbana. Também as roupas eram tão inapropriadas quanto, o quanto ilógico: eram roupas mais que de garoto, eram roupas de “mui” garoto. Mas se você não é “mui” garoto, roupas de “mui” garoto não lhe vestem lá tão bem, pois. Eu parecia uma garota em roupas de “mui” garoto, uma garota negra que fuma crack no centro da cidade, usando roupas de garoto para evitar o estupro ou; uma garota mestiça indo a cortar cana-de-açúcar com as mesmas roupas que homens iam a, pois é inapropriado e pouco lógico cortar cana-de-açúcar com roupas de mulher, mas era eu uma jovem garota da cidade, pois. Podes ver? Lá eu me encontrava em um episódio de problema de gênero, adentrando o ônibus, ás vezes, muitas vezes descendo no ponto errado por evitar pedir informações a estranhos, para não ouvirem minha voz de garota, não verem meus gestos de garota, o quanto eu movia os braços enquanto falava e o quanto o todo isso eu ignorava mesmo então. Havia os garotos negros rindo de mim do lado de fora do ônibus e era o que meus pais me diziam sempre: ignore os problemas, como um homem.

            Ipswich, Inglaterra, 1963:

            “O mundo desmoronando de novo”; bem... Não são as nevascas, nem os velhinhos em Taiwan morrendo de frio, pois se esqueceram de se agasalhar porque não perceberam que o frio chegou, é mais patético que isso, é aquela garota. A que eu queria que espalhasse pomada na minha panturrilha pós treino, devo eu estar voltando á adolescência, quase isso, tenho vinte e dois e talvez seja eu muito velha para aquela garota, não sei bem, fico procurando imperfeições no meu corpo para encontrar algo para culpar mas. É só o mundo desmoronando de novo. Já aconteceu antes e. Quando os fortes ventos e as fortes chuvas começaram a jogar as casas de madeira para o ar, um pedaço de teto de madeira parou bem perto de mim e lá me segurei, me abriguei e foi como me segurei na vida por toda a adolescência. Relaxe e respire fundo, não vai ser diferente especialmente agora.
            “As imperfeições estão na minha mente, não no meu corpo”.
            “Eu quero viver deliciosamente, como uma bruxa selvagem”;
            Devo essencialmente dizer que Carla me deixou tão rápido quanto me teve, quanto veio á minha vida, sugerindo planos, sugerindo Londres. Eu, inocentemente, dizia a ela coisas como “Odiar homens? E por quê?” – Perto dos meus ovários, do meu útero, há principalmente o estômago; lá é vazio e escuro, e há um canhão de luz no chão, o que sugere, o que leva um ato. Lá dentro também, há um homem de lata e ele está terrivelmente solitário, isolado, miserável. Ele se debate pela epilepsia e faz um barulho que tira meu sono, me machuca (Está ok para explicar a depressão?)
            “Eu não quero viver um ato”
            “Eu quero viver deliciosamente, como uma bruxa selvagem”.

            O diabo em forma de bode preto veio a mim e disse ‘Como queira... Você viverá como uma bruxa selvagem em São Paulo, no Brasil, no corpo de um homem. Mas não deliciosamente. Tudo ao seu tempo. Vamos cuidar disso na próxima vida’.

            São Paulo, Brasil, 1995:

            Sonhar acordado. É o que faço em muito do tempo em que pareço um idiota na face. Os meninos altos da escola, as meninas, todos riem dela, da face, por eu parecer um idiota, mas é só porque estou sonhando, entende? Não sou um idiota, posso ser legal, fazer até piadas, praticar esportes mas. Mesmo minha mãe pensa assim e o pior: ela é uma mulher idiota que acha seu filho um idiota.
            Quando você vai deixar de usar este boné ridículo, garoto cafona? Ah sim, quando você tiver cabelos o suficiente para esconder a cara, certo? Nenhuma resposta... Desculpe entrar nesse flashback mas, esse cafona garoto nunca abre a boca para nada, aliás ele foi educado, treinado para tal. Os prédios passando do lado de fora do ônibus... Essa sim é a cidade, não o subúrbio feioso e selvagem onde ele vive, até os prédios o assusta se quer saber, é como se ele temesse que algum prédio o perguntasse algo, falasse com ele e temia responder pois temia falar, contudo. Um prédio bem grande com pernas sentaria ao seu lado no ônibus e comentaria ‘Como está calor hoje, não?’, mas o garoto, o cafona garoto primeiro diria ‘Han?’, tal exclamação é a primeira manifestação sonora, de susto, que ele emite quando uma pessoa estranha o dirige a palavra. Provavelmente, logo depois ele responderia ao prédio ‘Hum’, o que significa uma tímida afirmação, seguida por um cafona sorriso, como um sorriso de Judeu, sabe? Aquele cafona garoto sorria como um Judeu mesmo sendo um falso católico, algum padre hipócrita lhe respingou uma água suja na cara quando bebê e nada havia de santo naquela água, nada de bênção na mão daquele comum homem e eles nunca dizem francamente, abertamente, didaticamente que aquela droga de ritual de batizado é apenas simbólico, e nosso garoto falso católico foi forçado a estudar o catolicismo por sua mãe, falsa católica idem, e nunca aprendi nada a não uma sensação de estar sendo observado por deus, especialmente durante a masturbação, a paranoia leve, e então o prédio com pernas não diria mais nada, viraria os olhos para cima, se levantaria e iria sentar se um outro assento onde não houvesse alguém tão idiota, mas uma pessoa em que se pudesse talvez conversar.
            Sonhando acordado embaixo do meu boné feio eu estava, estava sim. Depois que um estranho fala comigo, a febre no meu rosto passa em alguns minutos. Tenho um pouco de dor de cabeça, pois meu cabelo abafado passou a noite anterior preso em lotes de cadarços de tênis, sim, pego eu seis ou sete cadarços de tênis e amarro com força pequenos tufos de cabelos para que eles cresçam mais rápido. (...) Meu sonho sempre foi ter cabelos compridos, mas eu sabia que meu pai os cortaria quando crescesse, ele sempre o fazia. Uma mulher velha me perguntou uma informação, mas eu estava tão catatônico enquanto sonhava, gaguejando ao ser incomodado como sempre, eu disse a ela para descer no ponto errado. O comportamento idiota está tão anexado a bondade que eu não era apto a dizer ‘Não sei o que você está perguntando, não posso lhe ajudar, desculpe’.
            Garoto cafona, seu completo imbecil: você não percebeu que durante a viagem do ônibus os prédios repentinamente viraram árvores? Sim, percebi, acalme-se, por favor. Eu percebi, percebi que de repente a paisagem lá fora era de árvores ao invés de prédios, mas, você sabe, na minha mente completamente imbecil, eu pensei que magicamente outros prédios viriam depois das árvores e eu desceria no ponto certo. Minha mãe me disse para perguntar ao trocador do ônibus sobre o ponto, eu deveria ter perguntado a ele sobre as árvores, mas eu estava envergonhado de falar com ele por causa da minha cara de garota, minha voz de garota, meus atos de garota e como eu falava com as mãos o tempo todo e.
            E nada! O ônibus finalmente parou na droga do zoológico, que fica bem longe. Parabéns, idiota. Agora você não tem dinheiro nem informação para retornar ao ponto onde deveria ter descido, onde você deveria se candidatar a um emprego de empacotador de supermercado aos doze de idade, ok, ok, sabemos que você não precisava de tal emprego, aos doze, mas seu pai acha que você deve trabalhar imediatamente porque ele foi uma criança trabalhadora do campo. Aquela criança trabalhadora do campo tornou-se um psicótico homem adulto e este é seu pai, a quem ligaste de um telefone publico em frente ao zoológico pedindo ajuda, pois claro, você não podia abrir a boca para pedir informação ou ajuda a ninguém. Quando seu pai chegou de carro para lhe apanhar, ele lhe espancou com desnecessária força, ao modo que seu boné cafona voou longe e caiu na rua, enquanto as crianças com pipoca na fila para entrar no zoológico, ficaram assistindo aquela cena e aquilo era muito mais legal de ver do que macacos, elefantes, girafas. Depois de eu ser muito espancado, as crianças jogaram amendoins para mim.
     
Ipswich, Inglaterra, 1963:

            Logo o mundo parou de desmoronar. Eu me virei até que bem. Não desmoronei também. Os nossos amigos da ONU vieram recolher os destroços, limparam tudo, trouxeram água, e tudo acabou até que bem. “Hoje estou tão feliz, faz sol, sinto como se o mundo inteiro fosse uma fábrica de chocolate”, eu estava andando por aí com a minha mochila nas costas, com o chaveiro de bichinho de pelúcia balançando com ela, minhas panturrilhas grandes, indo a treinar; então, naquele dia, os garotos me interceptaram.

            São Paulo, Brasil, 1995: Uma Desobediência.

            A semente do mal estava plantada. A semente do mal estava plantada em mim.
            Você sabe a parte boa e a parte ruim de ser um idiota? A vulnerabilidade, é claro. Sendo um, você pode ser facilmente oprimido e acorrentado, mas também pode ser facilmente convencido a praticar o mal, a desobediência, o deboche e fálica visão política ou “cegueira política”, se assim o queira.
            A planta que eu viria a ser crescida era exótica e nunca iria dar nenhum fruto. Você sabe do que estou falando, não?
            Ó meu deus, como estive quieto por tantos anos. Como chutei a bola para fora do gol. A treinar futebol e ter de aceitar aqueles garotos me insultando no treino. Eu nunca pude responder porque há algo, algo dentro da minha boca que me detém, detém a palavras mas: naquele dia, naquela quente dia eu teria uma voz, foi o que eu pensei quando dei o sinal para o ônibus.
            E isso é um sonho.

            Um homem e uma mulher. Um homem. E uma mulher. Não eram bem as bíblias de bolso que eram distribuídas nas escolas públicas nos anos 1990. Sim, fizeram isso. Nesse laico estado. Nesse hipócrita estado. Nesse tolo estado. Nesse selvagem estado. Até que não é estado, na prática. Bem, não eram as bíblias de bolso, mas eram as mentes, as mentes daquela comunidade, daquela comunidade suburbana, era meus pais, o homem da padaria. Um homem e uma mulher e se você não pode ser um homem, então você só pode ser uma mulher e foi como eu pensei que eu deveria ser uma mulher, ou me tornar uma aos doze, entende?
            Um homem árabe? Um homem árabe ensinando catecismo? Um homem árabe ensinando catecismo para crianças? Soa estranho, mas não soa estranho desde que esse não é um estado, mas habitat do homem neolítico, talvez. Pedofilia não soava assim tão mal porque eu sabia o que era o sexo aos doze e eu queria muito, mas muito ser tocado por aquele homem árabe professor de catecismo.
            E isso é um sonho.

            Desculpe, sinto muito desapontar todos vocês. Mas não rolou. Pois eu era um freak na essência e para mim estava ok morrer naquele momento. Pois eu estava apenas apaixonado por aquele homem e eu podia fazer qualquer coisa por ele, o que ele me pedisse. Além de ser um idiota, eu era um adolescente e é assim que os adolescentes amam.
            Homem árabe: Tem certeza que você quer fazer isso?
            Eu: Tenho.
            Quer saber? Não há mesmo razão para alguém fazer algo assim. Assim como não há explicação lógica para o amor, se você pensar racionalmente. Eu já andava meio triste desde o meu aniversário em onze de abril, quando meu pai passou o dia fingindo que não era meu aniversário e quando eu perguntei sobre meu presente ele respondeu, rude como sempre, para que eu não o perturbasse e me deu dinheiro para que eu comprasse a droga do presente, e a pior parte disso tudo é que eu de fato comprei o presente. Eu era uma criança imbecil capitalista e materialista, do contrário eu deveria ter dito para ele enfiar aquele dinheiro no cu. Ele quebraria meu maxilar, mas ok, é assim que se aprende a se expressar de acordo com o que se pensa e o que se acredita, mas eu não era capaz de pensar e/ou acreditar naquela época. E também eu fiquei tão tocado pelo que aconteceu em Oklahoma City dias depois que eu...
            Bem, se a última refeição da sua vida, no corredor da morte, não pode custar mais do que vinte dólares então por que eu deveria ter dinheiro para gastar no aniversário, não?
            Sim, entrei em um desses ônibus cheios de São Paulo com o colete de bombas e matei um monte de gente como prova de amor ao homem árabe e de ódio ao estado, seja lá o que isso signifique.
            E isso é um sonho.

Ipswich, Inglaterra, 1983: Um aniversário.

Uma segunda Julia, ouvindo Joan Jett o tempo todo, trancada no quarto, me ocorreu. Segunda-feira, o pior dia para um aniversário, estava a chegar e na sexta-feira antes, Julia decidiu recusar a fútil festa de aniversário que ela tem todos os anos. Tocariam Cindy Lauper na festa, tocariam alto e isso não é o pior, mas as primas, as cafonas, dançando ao som. Ok, certo, não certo, bem dizendo, e seu eu não aparecer na minha própria festa? Vou para um hotel pequeno, vou comprar um bolo de chocolate branco pequeno para eu só; sim, pois minha mãe não gosta de bolo de chocolate branco e ela é tão egoísta que escolhe o sabor do bolo todos os anos. Além disso, ela não sabe fazer um bolo bonito. Lembra-se do meu aniversário três anos atrás? Ela fez um bolo tão feio que as meninas da escola até tiraram fotos dele, e fizeram bullying comigo por causa daquele bolo por um ano, tiraram até fotos de mim soprando a vela. Além do bolo, vou comprar a cerveja cara que eu gosto, só para eu só, melhor do que ter de tolerar meu pai embebedando-se com litros daquela cerveja barata que parece água para mim, como vodka parece água aos russos e. Ah, sim, eu estava quase esquecendo de dizer um detalhe muito importante sobre mim: Sou heterossexual.

Deixe dizer um pouco sobre mim: Algumas vidas atrás eu sequer podia imaginar, mas agora eu me vejo como uma parte de um mundo perverso e feminicida, onde o cheiro de toda a nossa massa vaginal chega ao meu nariz como nunca. Assim, eu observo e admiro algumas mulheres que são estranhamente, desafiada mente vivas. Nossa tola cultura de compartilhamento de informação de tinta de cabelo começou a imprimir em mim a imagem de uma dominatrix – uma figura devorante que ri do casamento, ‘da produção masculina independente de cadeiras e da produção feminina de bebês’.
            Mais: os desencontros e os infortúnios do amor ou da foda; ou amor e foda, não fazem de mim uma pessoa que odeia mais a vida, mas uma pessoa que se odeia ainda mais. Agora que estou completamente sozinha e ok, sinto falta de mim mesma quando eu era completamente humilhada pelo meu amante, um idiota. Eu coleciono feridas nessa vida medíocre que tenho levado por anos. Só tenho ressentimentos.

            É o vício. O que há de se fazer? Fui durante todo o caminho pensando o que eu ia escrever na minha placa do protesto das feministas. A vadia. A vadia não vai pensar numa frase melhor que a minha dessa vez, não dessa. Eu odeio a Cindy Lauper, puta que o pariu!! Pensava eu no momento em que prestava uma felação a um homem, no carro, no encostamento da estrada. É o vício... O que há de se fazer?
            Minha prima Martha vai á minha festa de aniversário, claro. Martha, a católica. Trouxa. Sei que foi ela. Me mandaram uma carta, com um nome de remetente qualquer, mas sei que foi ela. Dentro da carta havia um papelzinho escrito ‘Hipócrita’, nada mais, veja se pode... Que ódio, fiquei até com febre. Veja bem, por essas e outras eu tive uma brilhante ideia e resolvi ir á minha própria festa.
            Meus poucos amigos, eles me dizem o tempo todo que devo ser feliz, e eu não consigo fazê-los acreditar o quão triste sou, e o quanto estou desapontada e decepcionada com a vida. Eles não conseguem me levar á sério, não conseguem; e eles dizem ‘Você nunca dá festas, Julia’.
            A razão disso é muito simples: festas sempre me deixam doente do estômago. O dia seguinte me traz o início de uma sequência de dias nada festivos, e nem mesmo me pergunte “A constante busca por dias festivos me faria doente para sempre”.
Convidei todas as garotas e não me opus a minha família.
            ‘Esse é o seu vestido de domingo!’ minha mãe disse, referindo ao vestido azul claro florido que usei uma única vez, eu acho, e também acho que foi na segunda-feira, não no domingo que usei. Pois bem, eu nunca vi tanta felicidade antes em alguém. Dentro daquele vestido, eu estava dizendo sim para ela depois de tanto tempo de desaprovação, desacordo. E também eu estava trazendo amigos para casa, opondo-me á minha natureza de nunca trazer qualquer tipo de felicidade para casa. Até minha carga falsa e cínica não estava comigo: eu não estava usando batom.            
            A mãe, secretamente: ‘Como esse vestido engorda a Julia... Eu não havia reparado antes’
            O bolo:
            - Choc
            - Essa massa já com essência de morango... hummm
            - Chocolate br
            - Olha o tamanho desses morangos para decorar
            - Chocolate branco!!
            - Essa calda caramelizada vai harmonizar tão bem com esses morangos e
            - Por que não coloca uma banana e dois ovos em cima do bolo também? Palhaça! – esbravejou Julia deixando a cozinha.
            A mãe, pálida. Pálida ficou. Nunca tão pálida.        

***
           
            Começou o inferno. Chegou um, dois, os tios gordos, essa formalidade conservadora que detesto. Os gordos com olhos gordos para a minha circunferência abdominal. Sim, estou gorda mesmo, mas vocês não vão dizer, certo? Melhor passar a semana seguinte comentando, mas não vai ter semana seguinte, seus leitões! Ah! A Martha, claro que ela não iria faltar.

            A política.
Ai, ai, quando é que o I.R.A. vai jogar uma bomba na Margaret Thatcher, hein?
            Martha: ‘Ridícula... Que tipo de gente simplesmente se senta em uma cadeira para ler jornal durante a própria festa de aniversário? Com todos os amigos e a família para dar atenção?’
            A mãe interviu:
            - Já tomou seu antidepressivo hoje, Julia? A que respondeu:
            - Já foi á puta que o pariu hoje?

            A Cindy Lauper.
            Eu sabia! Sabia que a filha de puta da Martha ia pedir para tocar essa merda. Caiu uma lágrima quente na minha bochecha, não pude evitar, mas. Pois dance, dance, vá explodir de alegria.
            Alegria mesmo é o meu primo safado usando a pélvis para dançar esse sonzinho ridículo. Só não vou chupar lhe a piroca porque ele vai querer ficar me pegando, pegando na minha circunferência abdominal, especialmente; e especialmente hoje, isso não será possível, do contrário... Sim, do contrário ele vai perceber o colete com as bombas que eu coloquei debaixo do vestido e está quase na hora de detoná-lo. Na hora de cortar o bolo, claro.

            E agora, esse é seu palco, esse é seu público, essa é a sua hora e não e não é só a hora do seu aniversário, Julia. Em frente á mesa, eu olhei para aquela combinação lamentável de seres humanos e anunciei que faria um discurso.
            Parabéns a você. Parabéns a você, mulher inglesa. Que segurou a barra da economia na primeira guerra mundial com o trabalho remunerado enquanto os homens rumavam a perder a cabeça. E agora?
            - Ah, discursinho feminista de novo, não! Disse a desinibida Martha.
            A réplica veio em seguida:
- Você só está usando essa calça enfiada no rabo por que alguém enfiou a cara na sociedade na época do sufrágio lá pelos anos de 1910 e
            Martha cruzara os braços, batera os pés. ‘Vaca’, pensara.
            E o episódio da primeira guerra em especial, serviu para nos mostrar que as transformações na sociedade só são conseguidas com força, luta, derramamento de sangue e
            E mulheres de atitude com a Cindy Lauper!!! – Gritou Martha por deboche.
            Eu pretendia continuar o discurso, mas não me contive em detonar o colete de bombas naquele mesmo momento ao que me subiu o sangue de uma forma que não pude evitar.
            Todos na festa morreram. Até alguns vizinhos. Todos os policiais com chapéus engraçados daquela pequena cidade inglesa foram até lá, e policiais com chapéus engraçados de cidades vizinhas foram lá para ver também e

            Bem, não virei uma estrela, de qualquer forma. Contudo, você sabe qual é o singular talento de Julia? A arte de não brilhar.
Aquele foi o dia em que eu esperava me tornar uma fada no céu, mas não foi bem assim.

            Pior do que nascer de novo, foi crescer.

Você pode ter dois finais se você quiser.


 XOXO