Eu tenho cento e setenta comprimidos de lítio
cuidadosamente guardados. Olhei para eles e pensem em usá-los por causa de
merda. A questão da sujeira toda no meu lençol branco também foi levada em
consideração. Estudei um pouco a morte por lítio. Primeiro a diarreia e o
vômito, depois os espasmos, rigidez nos músculos, urina em abundância para aí
sim, o coma e a morte. Uma fralda geriátrica poderia facilitar as coisas ou
apenas me jogar do nono andar da empresa onde trabalho no dia seguinte, o que
seria mais rápido e mais fácil.
Merda porque eu mesmo disse que era merda. Mais ou
menos dinheiro por um cargo em logística. Me peguei me desaguando em choro por
uma empresa que me pagaria mais, mas me recusou por eu ter um diploma de
tecnólogo e não de bacharelado. O 141 não atende o telefone. Eu não tinha
ninguém para conversar. Pensei até em tentar conversar com o garoto que estou
apaixonadinho (sim, outro garoto), mas seria patético demais. Eu disse a ele “Bom
ter um crush platônico nesse momento, não?” e ele disse de volta:
Burn
The witch
The bitch
Is dead
Sabe o que acaba com essa merda toda?
Dois comprimidos de rivotril com risperidona e lamotrigina e deitar bem gostoso
na cama. Ameniza qualquer situação. Sim, eu deixei o daimoku.
Guardado por seis meses em um arbusto, tomando
chuva, coitadinho, meu dardo sumiu por dois dias. Cortaram um pedacinho dele
com a serra elétrica ao contar os arbustos, mas ele sobreviveu até que bem.
Durante a suspensão da FFLCH, cortaram um pedacinho meu com uma serra elétrica
também, mas é tudo questão de arrumar um soldador agora. Sim, a FFLCH me
aceitou de volta. Estou treinando com eles há uma semana. Tudo o que eu preciso
é de um bom soldador agora.
A merda é que eu não me dediquei á carreira de
logística como meus colegas de faculdade, que ganham muito mais dinheiro que eu
hoje. Lá em 2003, eu achava que ser famoso pela minha arte era uma questão de
tempo e aquela faculdade era só um meio de jogar voleibol com frequência e
arrumar bastante confusão. Meu melhor amigo daquela época abriu uma
transportadora, tem casa, casou-se, teve filho, virou um fascista e por isso
cortou relações comigo. E eu moro em um quarto com varanda alugado na vila
mariana tentando entender e aceitar que eu não fiquei famoso e agora não dá
mais para voltar no tempo para consertar as coisas. Mas sabe do que eu preciso
mesmo? É de um bom soldador.
Faltam poucos dias para o natal, mas esse ano não
estou tão tocado assim. Estou há duas semanas no novo emprego. Quero ir embora
de lá. Mereço mais. Tudo o que eu queria era colocar um twink em um saco
vermelho e sair carregando ele nas costas até meu quarto alugado com varanda.
Você sabe, é só de um bom soldador que eu preciso.
Vamos ler agora um trecho do meu romance inédito
“Igor na Chuva”, que fala sobre o natal:
“Mais um segredo: eu
adoro o natal. É uma luz, um sentimento claro, plácido que não vem de cristo,
não se culpem por isso. Só coisa ruim vem de cristo, como sofrimento, dor,
culpa e fome. Também não é só sobre comprar coisas o natal, pois evito o
consumismo, especialmente no natal, eu só me encanto com as luzes, as luzes. O natal
nunca será negro, cristo nunca será aceito como negro. As luzes são claras.
Ninguém produz artigos de natal com personagens negros. O papai Noel é branco.
Cachorros labradores poderiam puxar o trenó, mas renas brancas é que puxam. O
cristianismo é uma das mais antigas demonstrações do racismo. Um enfeite
artesanal sorriu pra mim e eu sorri de volta. [Deitei sobre a montanha de
artigos por alguns minutos. Para descansar. Adoro descansar. Até mesmo por dez
minutos após o café da manhã. Mesmo sabendo que vou me atrasar por isso, faço.
Mas dessa vez não importa, sei que vou chegar á universidade, mas ás vezes o
descanso me desmotiva. Queria ficar aqui. Estou sonhando. Sonhando com o cara
alto e seu cachorro grande (será que levam cachorros para passear na chuva?),
esperando ele vir me salvar, colocar a coleira em mim e me levar embora, e deixar
o cachorro perdido por aí. Estou tentando falar sobre humanidade aqui, me
arrastar com o belo homem de trinta e oito por uma corrente pelo bairro de
Pinheiros acima. Conte. Conte quantos músculos visíveis você consegue ver no
meu abdômen. Seis. Ao menos seis. Isso não conta? Você não acha que pareço sexy
aqui quase nu jogado nessa montanha de artigos de natal, tão abandonado? Estou
desesperado que meu corpo vai desabar em dois anos e é por isso que estou com tanta
pressa. Eu. Por mim mesmo, eu me levaria embora, cuidaria de mim mesmo. Mas não
posso. E eu deveria ter aprendido isso desde que eu tinha vinte e poucos anos:
viver sozinho, ser sozinho. Vendo o céu chuvoso com essa nostalgia, pensei que
não pude. digo mais uma vez: acho que o mundo não vai acabar agora. Essa chuva
vai durar um longo, longo tempo]. Uma rena de vidro soprado não parecia estar
sorrindo, mas eu estava. Eu odeio minha irmã. Então meu sorriso se contorceu
para baixo tão rápido: comecei a chorar de novo. Só nós cinco. Minha mãe, meu
pai, minha irmã eu e a minha sobrinha. Aquele silêncio. Aquela TV infernal.
Aquela mesa quieta. Aquele abraço falso. Daí, nós ficaremos um ano inteiro sem
nos ver. Minha mãe, esperta e perspicaz como sempre, nos evita há dois anos. Ela
vai passar o natal com suas primas chatas e nos deixa sozinhos: eu, minha irmã
e minha sobrinha. “Nossa família é chata” minha mãe disse há dois natais atrás.”
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