Prólogo
“Dizem que a vida passa pelos seus olhos quando você morre. A vida
passa pelos meus olhos o tempo todo”.
“The past is never dead. It’s not even past”
Willian Faulkner
“ A Croácia é uma sala branca? A França é um buraco negro?”
Parte 1
quando pedi ao meu gerente vinte dias de férias, para pagar algumas dívidas e para me preparar melhor para o lançamento do meu livro, ele diz 'tire treze dias, volte e depois tire os outros sete' ele pensa 'é claro que ele vai aceitar, ele nunca viaja'. ele está certo. eu nunca viajo. eu não economizo dinheiro durante o ano para. eu não tenho namorado ou um amigo tão próximo que tire as férias ao mesmo tempo que eu para viajar comigo. além disso, sempre disse a mim mesmo: "só vou viajar ao exterior quando eu tiver algo a fazer por lá". eu só vejo essa possibilidade daqui a quatro anos quando eu participar do campeonato mundial master de atletismo, quando eu tiver 35. sim, tenho esse sonho, quero ser campeão mundial master no salto em distância aos 35. para isso, preciso saltar por volta de 6,80m (um metro a mais do que salto hoje). é possível? sim, é terrivelmente possível. E esse não é meu único sonho. quer saber de uma coisa? quer que eu te conte um segredo? eu sonho o tempo todo. eu nunca parei de sonhar e é por isso que estou aqui, escrevendo nesse blog, andando por aí, deixando a cama todas as manhãs.
esse sou eu na minha festa de aniversário. chamo assim porque eu nunca faço um evento no meu aniversário. nunca levo amigos a um bar, por nunca ter dinheiro disponível ao décimo primeiro dia de abril, por não ter energia para isso ou por não ter amigos o bastante para encher uma mesa de bar. então, eu comemoro quando eu publico livros, de dois em dois anos, mais ou menos. funciona em parte, porque meu lançamento juntou pessoas suficientes para encher uma mesa de bar para um evento de aniversário, porque as pessoas ainda acham que publicar um livro é uma coisa importante, um orgulho mas. claro que foi um número bem pequeno de pessoas para um lançamento de livro. o sorriso amarelo do editor mais uma vez, faz eu me sentir o maior idiota do mundo. tentei divulgar o evento, tentei mesmo mas. eu definitivamente não sou popular. agora começo a achar que lançamento de livro não é uma boa ideia. vou pensar em algo diferente para o próximo livro. sim, haverá próximo livro, o quarto, que é tão bom quanto este que estou publicando agora. o quarto sairá não porque sou popluar, mas porque eu sei escrever, e isso é o mais importante.
Parte 2
39ª mostra internacional de cinema de são paulo. primeira
parada: croácia.
“doente” (bolesno, CRO, 2015, Dir: Hrvoje Mabic) ⋆⋆⋆⋆⋆
bolesno é um documentário que conta a terrível história de ana dragicevic, uma garota croata que ficou presa em uma clínica para dependentes químicos sob falsa alegação de ela ser viciada, quando na verdade estavam a tratando por sua homossexualidade. ela foi presa lá aos 16 e ficou por cinco anos. ana processou a médica responsável por sua internação e também seus pais que a internaram. de acordo com o documentário, o caso ficou razoavelmente famoso na croácia. é difícil encontrar na internet algo sobre ana que não esteja em língua local, então não pude checar exatamente quando se deu a internação, mas posso supor que aconteceu no começo dos anos 2000. Sim, no começo dos anos 2000 eles ainda faziam isso com homossexuais, quase o fizeram comigo e. meus pais 'descobriram' a minha homossexualidade no ano de 1999 ou 2000, não me lembro exatamente. eu tinha 15 ou 16. eu senti aquela 'lepra' que o escritor chileno pedro lemebel diz sobre a homossexualidade em um de seus mais memoráveis poemas. aliás, tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente em 2013:
eu, marcelino freire e pedro lemebel.
sim, pois meus pais me trataram como se eu não estivesse apenas doente da cabeça, mas da pele também. éramos uma família bem porquinha, mas quando minha mãe descobriu minha homossexualidade, ela me deu uma toalha só para mim e um sabonete só para mim. todos na minha casa usavam o mesmo sabonete, que ficava lá na saboneteira até acabar. lá nunca se controlava quem usava as toalhas também, minha mãe costumava colocar duas toalhas grandes no box e nossa família ia usando até que minha mãe julgasse que elas estivessem sujas e as colocava para lavar. mas quando minha mãe soube, ela foi bem clara em dizer que não era para eu usar aquelas toalhas, as do resto da família. ela me deu uma só para mim. não muito tempo depois, meus pais me levaram ao psicólogo alegando que eu estava 'muito nervoso'. na verdade, o que eles queriam é o que psicólogo 'curasse' minha homossexualidade. claro que não funcionou e naquela mesma ápoca, eu comecei a sentir sintomas de depressão que permanecem comigo até hoje, aos 31. o caso de ana dragicevic é muito mais desumano que o meu, é claro. quando o pai dela a visitava na clínica, ele se esquivava quando ela tentava tocar suas mãos. quando ana finalmente conseguiu a liberdade, o diretor acompanhou ana até a casa de sua mãe. ela abre a porta, vê ana e bate a porta. depois de anos de terapia e grave depressão, uma muito mais grave do que a que tenho, ana fica sabendo que sua mãe teve um ataque cardíaco. ana foi visitar sua mãe no hospital e ela chorou muito quando viu a filha. ana também escreveu uma carta para o pai, dizendo que não deseja nada de mal para ele e que ela se lembra com carinho do tempo em que passou com ele até ter 16 anos de idade, uma época em que ela teve a sensação de ter sido amada. eu também tive esse 'buraco negro' na minha vida. minha mãe tornou-se budista há uns 5 anos atrás e se tornou uma pessoa mais fácil, meu pai também. agora eles me tratam bem, mas quando eu era adolescente, quando mais precisei deles, eles me viraram as costas, eu passei vários anos tendo a sensação de que ninguém no mundo me amava. parece que os pais começam a se arrepender do que fazem com os filhos gays adolescentes quando eles já tem mais de trinta anos. mas o passado nunca está morto, não é sequer passado.
Parte 3
39ª mostra internacional de cinema de são paulo. segunda parada: esculhambação.
“Pixadores” (Tuulensieppaajat, 2014, FIN, Dir: Amir Escandari) ⋆⋆⋆⋆⋆
este nem estava na minha programação. pagar para
ver um bando de moleques finlandeses pixando por aí? jamais. a palavra 'pixar' ainda nem é reconhecida como palavra. porém, quando na
hora em que me deu muita vontade de ver um filme em determinada hora e abri a
sinopse deste filme, percebi que é um filme finlandês, mas sobre pixadores
paulistanos. e que também é parte colorido e parte preto e branco. bem, fiquei
curioso para ver como seria o olhar de um diretor finlandês para esses moleques
brasileiros pixadores alienados. pouco antes da sessão, no espaço itáu da augusta, tinha gente de comunidade
entrando com bebida alcoólica na sessão (fica um alerta para o pessoal da mostra e do espaço itaú). olha, detesto esse povo de comunidade, acho
desnecessária essa postura agressiva deles. o motivo desse tipo de atitude
estava claro logo nos primeiros depoimentos: “nós gostamos do ódio que
despertamos na sociedade”. o filme é um documentário sobre quatro pixadores
paulistanos, todos moradores de comunidade, e que foram para berlin mostrar seu
“trabalho” por conta de um edital da vida. eu adoraria saber quem foi o babaca
que mandou esses quatro bandidos para berlin com o dinheiro dos nossos
impostos. sim, bandidos, visto que
pixação ainda é o mesmo que “vandalismo” em nosso código penal, portanto é
crime. se é crime, quem pratica é bandido, certo? certo. então vamos lá: o filme acompanha as aventuras desses marginais escalando prédios e sujando-os. três deles, sequer sabem escrever o
próprio nome. um deles, que é uma espécie de líder do grupo sim, é
alfabetizado e um 'pseudo-culto', na hora em que o filmam na cama lendo nietsche, me ecoa uma frase ‘quando um babaca decide que quer ser culto e
espertinho, a primeira coisa que vai ler é nietsche’. quando um dos moleques,
que já tem um filho, é questionado sobre o que quer da vida, ele responde: “ meu
sonho é ter uma casa”. dá vontade de gritar em direção a tela a
seguinte frase ‘e você gostaria que chegasse alguém e pixasse a SUA casa?’. esse é o conflito principal da primeira parte do filme: um cara ‘pseudo-culto’
que acha que sujar a parede dos outros é “arte”, se junta a três analfabetos e
os fazem pensar que também estão fazendo 'arte', que estão fazendo 'um trabalho', que
estão 'transgredindo'. eles nem sabem o que estão fazendo, não sabem nem
escrever o próprio nome. a verdade é que
esses moleques sem educação só o fazem, porque gostam e porque acham legal
serem odiados pela sociedade, a velha “vitimização”. eles acham que eu e você,
que moramos em regiões centrais em apartamentos (com muito esforço, inclusive; eu mesmo vou acertar o que devo de aluguel só no dia 15), somos culpados por
eles morarem na comunidade. cara, eu não tenho culpa, não tenho mesmo, pago uma
caralhada de impostos. agora, se os políticos pegam o dinheiro e enfiam no cu,
não é minha culpa, não mesmo. legal, chega a notícia que os pixadores foram
contemplados no edital e vão para berlin. o 'pseudo-culto' diz: 'Vamos lá
mostrar para eles nossa arte política!'. daí o analfabeto responde “se é
louco...” claramente, ele não faz a menor ideia do que é 'arte política'. bem,
lá vão os pixadores para berlin com o dinheiro dos nossos impostos. daí,
acontece o ápice do filme: quando os curadores da tal bienal de berlin os
convidam para um evento onde supostamente devem mostrar a sua 'arte'. quando
chegam no local, se deparam com paredes brancas de madeira destinadas ao 'trabalho' das pessoas. no local, os curadores falavam sobre o que era pintar
paredes utilizando tinta spray para fazer desenhos, pinturas, ou qualquera. não, eles não saem por aí escalando prédios públicos e sujando-os. pois então o 'pseudo-culto' diz que 'não é esse o
nosso trabalho', e 'não viemos aqui para pixar essas madeiras brancas'. o que
fizeram os quatro contemplados então? saltaram as madeiras, pixaram o prédio
público e tombado que tinha atrás delas, jogaram tinta no curador do evento e a
palhaçada terminou com a polícia, claro. falando de cinema, achei a atitude do
diretor extremamente corajosa em fazer o trabalho. E u não acho nem que ele aprove
o que esses marginais fazem, mas ele quis mostrar, quis dizer que aquilo
existe, em um lugar onde ainda existem pessoas não tem educação suficiente
sequer para escrever o próprio nome e acham que são artistas, onde gente que
tem uma educação básica e ruim pega um livro do nietsche e sai por aqui achando
que é um gênio, achando que está arrasando no rolê. eu dei cinco estrelas. pela coragem do
diretor, pelo conflito, o documentário é muito bem feito, muito bem filmado, a fotografia em
preto e branco está linda (só a parte filmada em são paulo está preto e branco,
também concordo que são paulo só deve ser filmada em preto e branco). quando acabou o filme, bati palmas e saí apressado. a sala do espaço itaú da augusta estava lotada, tinha até gente em pé. o que será que aconteceu depois? será que os caras pixaram a sala?
voltarei no próximo post para falar mais sobre a mostra.
Epílogo.
temos uma imagem do biffe de atletismo. eu também viajo quando corro para saltar, quando saio do chão, da tábua até a areia.
XOXO