31 de mar. de 2021

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LEITURAS DE QUARENTENA
Dois livros que li neste final de semana: “Igor na chuva” (Folhas de Relva, 2019), romance de
Hugo Guimarães
, e “O sêmen do rinoceronte branco” (Patuá, 2020), coletânea de contos de
Cinthia Kriemler
.
“IGOR NA CHUVA”
O livro de Hugo Guimarães é, confesso, diferente de tudo o que já li na vida. Autobiográfico e corajoso, escrito de maneira não convencional, expõe de maneira crua as vísceras do universo underground por onde o autor transita. É um texto seco, direto como um soco. Segundo minha impressão, é o resultado de um jorro de consciência em meio a surtos de depressão nos quais o autor se debateu e do qual, por fim, se libertou. A prática regular de esporte (atletismo, com a utilização de um instrumento para lançamento a distância, o “martelo”) foi decisiva para sua recuperação.
Dividido em capítulos curtos com títulos tão estranhos como “Levantar-se para ser pai” e “Paparazzi nazi”, o personagem Igor se move por uma São Paulo muito diferente da cidade atraente a que nos habituamos. A capital paulista que emerge do livro tem sangue, esperma, garotos louros idealizados e nem sempre reais, sarjetas, cuspe, boates gay lotadas, quartos alugados nem sempre limpos, a família (quase) sempre ausente no quesito carinho e atenção. Muitas vezes politicamente incorreto, Hugo Guimarães propõe ao leitor um mergulho sem rede no breu da existência, como fica explícito nessa passagem:
“Vi uma catacumba da janela do ônibus no cemitério São Paulo com o retrato do garoto louro. Os semáforos: tente imaginar o que sete dias podem causar aos semáforos de uma cidade. Tráfego é mais que caos, para aqueles que não podem optar por ficar em casa. A liberdade facínora do motorista descendo a Rua Cardeal Arcoverde em alta velocidade. Aquele semáforo sim, ele funcionava perfeitamente, e estava vermelho. Até eu vi. Mas quando o criminoso motorista viu a garota com cabelo azul sobre a faixa de pedestres, o instinto animal mais original se mostrou, derrotou a identidade humana e o ônibus atropelou a garota como se ela fosse um lego.”
Recomendo a leitura de “Igor na chuva” para os leitores sem medo.
“O SÊMEN DO RINOCERONTE BRANCO”
Conheci a literatura de Cínthia Kriemler por meio de seu romance “Tudo que morde pede socorro”, lançado pela Patuá em 2019. Um livro impressionante, sobre o qual já escrevi aqui. Agora passei a conhecer a contista, tão boa quanto a romancista.
“O sêmen do rinoceronte branco” reúne 27 narrativas curtas em que o estilo da escritora mais uma vez se impõe: frases curtas, temas fortes, desenvolvimento seco e final impactante. Ou seja, o conto em sua estrutura fundamental, tal qual foi definido por mestres como Dalton Trevisan e Rubem Fonseca. Gosto demais desse estilo e sempre o persigo, modestamente, quando rabisco minhas histórias. O universo abordado nas histórias de “O sêmen...” é sempre a vida real, essa matéria-prima inesgotável para se falar do que oprime, do que é ordinário, violento, injusto, agressivo, sempre, como não poderia deixar de ser, a partir de uma perspectiva feminina.
A coletânea toda é de excelente qualidade, mas quero destacar dois textos: “Mesa posta” e “Aposentadoria”. O primeiro, narrado em primeira pessoa, me pareceu extraordinariamente bem-acabado na forma e arrasador no conteúdo: trata das ausências que vão se tornando presentes em nossa vida e com as quais temos que lidar, sabendo ou não. “Falta é coisa que a gente sente do todo.”
O segundo não é menos lancinante: a doméstica que limpa a casa da patroa “dia 1, dia 2, dia todos”, as veias dos braços explodindo pela força, sem que a abandone o sonho de quando limpará a sua casa própria. Uma bala perdida interrompe tudo e traz a tragédia à luz.
A escrita de Cínthia Kriemler é, por vezes, cruel, impiedosa, que exige do leitor uma respiração profunda numa ou noutra passagem de maior impacto (e há várias delas!), mas é um sobressalto que vale a pena vivenciar. A autora declarou uma vez numa entrevista: "Eu não escrevo finais felizes." Quem olha para a realidade com olhos de ver, concluirá que essa declaração está plenamente justificada.
Sou fã de Cínthia Kriemler. Se você ler o que ela escreve, também será.

Mário Baggio
22.03.21