“Julia”
Ipswich, Inglaterra, 1963:
Sabe
aquela canção de Lennon & McCartney chamada ‘Julia’? Pois bem, aquela Julia
sou eu, e não a Julia Lennon como muitos acreditam. Bem, eu também devo dizer
que fui estuprada e assassinada antes de tudo e você sabe como é isso, Hugo?
Pois nem queira saber. Não conhece essa clássica canção dos Beatles? Bem, é que
estamos todos tão habituados a chamar qualquer canção dos Beatles de clássico
que. Bem, talvez não seja essa um clássico visto que você muito provavelmente
não a conheça se você não é um fã dos Beatles mas. Bem, é bem melhor do que ser
a ‘Jude’ não? Ei Jude... Ei Jude o quê? Hehehe quá quá quá. Aquela ‘Jude’
sempre me faz pensar em uma mulher velha, além do mais eu não gostaria de ser
responsável pela pior canção dos Beatles, um grande desapontamento para mim
seria, mais do que me tornar a mulher velha que nunca fui.
Era exatamente
assim. Metade do que os garotos dizem, não faz sentido. Ah sim, o primeiro
verso da canção ‘Julia’ dos Beatles é assim: ‘Half of what I say is
meaningless’; prosseguindo, eu diria ‘Metade’? Não, não diria, mas. Muito do
que os garotos dizem não faz sentido. Sentido algum. Era por causa do meu suor,
meu suor pós-treino, do treino de voleibol e. O como eu costumava ir para casa,
ir em direção à parada do ônibus com aquele suor ainda em mim, e com a minha
mochila nas costas, essa com um chaveiro com bichinho de pelúcia pendurado,
balançando enquanto eu andava, e meu cabelo, voando por cima da cabeça com o
vento e. Aquele suor lentamente secando sob as minhas panturrilhas, minhas
panturrilhas nuas, á mostras, e os garotos as vendo... deus... Céus...
São Paulo, Brasil, 1995:
Sendo eu feminino,
parte louco, tendo de fingir ignorar um homem rude que me olha ele rude eu
feminino, ele que eu vejo com o rabo do olho; Sento no lugar do ônibus onde eu
melhor posso me esconder, e tento esconder o meu rosto de doze anos de idade
com o boné.
Acho
que essa face sugou a barba. E não vai vomitar de volta. Então vou eu evoluir á
paranoia quando adulto, me punindo com fome para combater essa ascendência
indígena que faz dessa face um tanto redonda. Fome, só fome para sugar essas
curvas dela. E o terror de ser um homem e ter de provar que sou um homem fez
meus testículos retraírem-se, esses que viraram ovários, “Ovários ao coração,
pelo menos”. Diga algo, a esse jovem garoto que nada vê, nada percebe. Sim,
mesmo assim devo dizer que pensamentos destes andavam comigo, naquele período
bem breve em que eu me sentia como uma garota.
Ipswich, Inglaterra, 1963:
Visto
que eu era uma lésbica, e uma lésbica nos anos de 1960, nos interiores da velha
Inglaterra, eu sempre quis me mudar para Londres. E eu quis ainda mais quando
me apaixonei pela Carla. Sim, ela era brasileira, por isso tinha esse nome
estranho; Londres e mais que isso, Londres com a Carla. Décadas atrás, tinham
já construído muitos prédios em Londres, não tão altos, é claro e. Droga... Os
apartamentos eram tão pequenos e caros para nós, garotas que éramos, tão jovens
e. Mudar-se, mover-se, fugir, fugir, eu tinha de fugir, queria pelos infernos
deixar a casa dos meus pais e. Essa é a natureza do homem, não? A viagem, quero
dizer. Desde que as primeiras histórias escritas pelo homem falavam tanto de
viagens, não? A Odisseia, Camões, deus... Acho que não estou só; Muitos dos
homens querem apenas dar o fora de onde estão de onde pertencem, não há nada de
nobre nisso; digo, nada de nobre em desbravar, enfrentar o mar, com chapéus
bonitos, espadas, nada de nobre, era apenas um desejo muito primitivo de ir
embora, dar o fora, ou até desaparecer, eu estava preocupada, preocupada com o
mar que eu estava por enfrentar, Carla, aquela exótica garota; Eu queria fugir
de casa para me juntar mas. Eu era jovem e verde, mas eu sabia que eu não podia
fugir de quem eu era. Tampouco desaparecer.
São Paulo, Brasil, 1995:
Eu
evito olhar para o lado de fora, pela janela do ônibus. Por gosto, evito olhar
para qualquer lugar onde alguém haja. Sei, sei que essa extrema vaidade embaixo
do boné é fêmea, e isso só gera um sentimento estranho, um contorno, sombra,
cheiro, alma sei lá, de garota em mim mas. Você não consegue perceber que esse
boné é talvez muito grande para a sua já grande cabeça? Tem uma propaganda
desenhada nele de algo que você sequer conhece, já lhe ocorreu? Ah, sei, você
gostou da cor (...). A parte dura desse boné barato também não é flexível e a parte
de trás não é fechada, tem aquela bandagem de plástico que ajusta ao tamanho da
cabeça, não consegue ver o quanto você fica ainda mais feio com ele? Melhor
seria não usar nada na cabeça. Ah, esqueci que seu corte de cabelo consegue ser
ainda pior e isso você sabe bem por que, não é? Sim, você ainda tentava não
cortar mais o cabelo do jeito que o seu pai mandava; algo grosseiro e tanto
ilógico, posso bem ver nessa imagem: um garoto afeminado com um cabelo mal
cortado por uma cabeleireira rancheira que não deve conhecer mais do que duas
formas de cortar os cabelos de um garoto e não havia uma cabeleireira melhor
naquela lamentável vizinhança suburbana. Também as roupas eram tão
inapropriadas quanto, o quanto ilógico: eram roupas mais que de garoto, eram
roupas de “mui” garoto. Mas se você não é “mui” garoto, roupas de “mui” garoto
não lhe vestem lá tão bem, pois. Eu parecia uma garota em roupas de “mui”
garoto, uma garota negra que fuma crack no centro da cidade, usando roupas de
garoto para evitar o estupro ou; uma garota mestiça indo a cortar
cana-de-açúcar com as mesmas roupas que homens iam a, pois é inapropriado e
pouco lógico cortar cana-de-açúcar com roupas de mulher, mas era eu uma jovem
garota da cidade, pois. Podes ver? Lá eu me encontrava em um episódio de
problema de gênero, adentrando o ônibus, ás vezes, muitas vezes descendo no
ponto errado por evitar pedir informações a estranhos, para não ouvirem minha
voz de garota, não verem meus gestos de garota, o quanto eu movia os braços
enquanto falava e o quanto o todo isso eu ignorava mesmo então. Havia os
garotos negros rindo de mim do lado de fora do ônibus e era o que meus pais me
diziam sempre: ignore os problemas, como um homem.
Ipswich, Inglaterra, 1963:
“O
mundo desmoronando de novo”; bem... Não são as nevascas, nem os velhinhos em
Taiwan morrendo de frio, pois se esqueceram de se agasalhar porque não
perceberam que o frio chegou, é mais patético que isso, é aquela garota. A que
eu queria que espalhasse pomada na minha panturrilha pós treino, devo eu estar
voltando á adolescência, quase isso, tenho vinte e dois e talvez seja eu muito
velha para aquela garota, não sei bem, fico procurando imperfeições no meu
corpo para encontrar algo para culpar mas. É só o mundo desmoronando de novo.
Já aconteceu antes e. Quando os fortes ventos e as fortes chuvas começaram a
jogar as casas de madeira para o ar, um pedaço de teto de madeira parou bem
perto de mim e lá me segurei, me abriguei e foi como me segurei na vida por
toda a adolescência. Relaxe e respire fundo, não vai ser diferente
especialmente agora.
“As
imperfeições estão na minha mente, não no meu corpo”.
“Eu
quero viver deliciosamente, como uma bruxa selvagem”;
Devo
essencialmente dizer que Carla me deixou tão rápido quanto me teve, quanto veio
á minha vida, sugerindo planos, sugerindo Londres. Eu, inocentemente, dizia a
ela coisas como “Odiar homens? E por quê?” – Perto dos meus ovários, do meu
útero, há principalmente o estômago; lá é vazio e escuro, e há um canhão de luz
no chão, o que sugere, o que leva um ato. Lá dentro também, há um homem de lata
e ele está terrivelmente solitário, isolado, miserável. Ele se debate pela
epilepsia e faz um barulho que tira meu sono, me machuca (Está ok para explicar
a depressão?)
“Eu
não quero viver um ato”
“Eu
quero viver deliciosamente, como uma bruxa selvagem”.
O
diabo em forma de bode preto veio a mim e disse ‘Como queira... Você viverá
como uma bruxa selvagem em São Paulo, no Brasil, no corpo de um homem. Mas não
deliciosamente. Tudo ao seu tempo. Vamos cuidar disso na próxima vida’.
São Paulo, Brasil,
1995:
Sonhar acordado. É
o que faço em muito do tempo em que pareço um idiota na face. Os meninos altos
da escola, as meninas, todos riem dela, da face, por eu parecer um idiota, mas
é só porque estou sonhando, entende? Não sou um idiota, posso ser legal, fazer
até piadas, praticar esportes mas. Mesmo minha mãe pensa assim e o pior: ela é
uma mulher idiota que acha seu filho um idiota.
Quando
você vai deixar de usar este boné ridículo, garoto cafona? Ah sim, quando você
tiver cabelos o suficiente para esconder a cara, certo? Nenhuma resposta...
Desculpe entrar nesse flashback mas, esse cafona garoto nunca abre a boca para
nada, aliás ele foi educado, treinado para tal. Os prédios passando do lado de
fora do ônibus... Essa sim é a cidade, não o subúrbio feioso e selvagem onde
ele vive, até os prédios o assusta se quer saber, é como se ele temesse que
algum prédio o perguntasse algo, falasse com ele e temia responder pois temia
falar, contudo. Um prédio bem grande com pernas sentaria ao seu lado no ônibus
e comentaria ‘Como está calor hoje, não?’, mas o garoto, o cafona garoto
primeiro diria ‘Han?’, tal exclamação é a primeira manifestação sonora, de
susto, que ele emite quando uma pessoa estranha o dirige a palavra.
Provavelmente, logo depois ele responderia ao prédio ‘Hum’, o que significa uma
tímida afirmação, seguida por um cafona sorriso, como um sorriso de Judeu,
sabe? Aquele cafona garoto sorria como um Judeu mesmo sendo um falso católico, algum
padre hipócrita lhe respingou uma água suja na cara quando bebê e nada havia de
santo naquela água, nada de bênção na mão daquele comum homem e eles nunca
dizem francamente, abertamente, didaticamente que aquela droga de ritual de
batizado é apenas simbólico, e nosso garoto falso católico foi forçado a
estudar o catolicismo por sua mãe, falsa católica idem, e nunca aprendi nada a
não uma sensação de estar sendo observado por deus, especialmente durante a
masturbação, a paranoia leve, e então o prédio com pernas não diria mais nada,
viraria os olhos para cima, se levantaria e iria sentar se um outro assento
onde não houvesse alguém tão idiota, mas uma pessoa em que se pudesse talvez
conversar.
Sonhando
acordado embaixo do meu boné feio eu estava, estava sim. Depois que um estranho
fala comigo, a febre no meu rosto passa em alguns minutos. Tenho um pouco de
dor de cabeça, pois meu cabelo abafado passou a noite anterior preso em lotes
de cadarços de tênis, sim, pego eu seis ou sete cadarços de tênis e amarro com
força pequenos tufos de cabelos para que eles cresçam mais rápido. (...) Meu
sonho sempre foi ter cabelos compridos, mas eu sabia que meu pai os cortaria
quando crescesse, ele sempre o fazia. Uma mulher velha me perguntou uma
informação, mas eu estava tão catatônico enquanto sonhava, gaguejando ao ser
incomodado como sempre, eu disse a ela para descer no ponto errado. O
comportamento idiota está tão anexado a bondade que eu não era apto a dizer
‘Não sei o que você está perguntando, não posso lhe ajudar, desculpe’.
Garoto
cafona, seu completo imbecil: você não percebeu que durante a viagem do ônibus
os prédios repentinamente viraram árvores? Sim, percebi, acalme-se, por favor.
Eu percebi, percebi que de repente a paisagem lá fora era de árvores ao invés
de prédios, mas, você sabe, na minha mente completamente imbecil, eu pensei que
magicamente outros prédios viriam depois das árvores e eu desceria no ponto
certo. Minha mãe me disse para perguntar ao trocador do ônibus sobre o ponto,
eu deveria ter perguntado a ele sobre as árvores, mas eu estava envergonhado de
falar com ele por causa da minha cara de garota, minha voz de garota, meus atos
de garota e como eu falava com as mãos o tempo todo e.
E
nada! O ônibus finalmente parou na droga do zoológico, que fica bem longe.
Parabéns, idiota. Agora você não tem dinheiro nem informação para retornar ao
ponto onde deveria ter descido, onde você deveria se candidatar a um emprego de
empacotador de supermercado aos doze de idade, ok, ok, sabemos que você não
precisava de tal emprego, aos doze, mas seu pai acha que você deve trabalhar
imediatamente porque ele foi uma criança trabalhadora do campo. Aquela criança
trabalhadora do campo tornou-se um psicótico homem adulto e este é seu pai, a
quem ligaste de um telefone publico em frente ao zoológico pedindo ajuda, pois
claro, você não podia abrir a boca para pedir informação ou ajuda a ninguém.
Quando seu pai chegou de carro para lhe apanhar, ele lhe espancou com
desnecessária força, ao modo que seu boné cafona voou longe e caiu na rua,
enquanto as crianças com pipoca na fila para entrar no zoológico, ficaram
assistindo aquela cena e aquilo era muito mais legal de ver do que macacos,
elefantes, girafas. Depois de eu ser muito espancado, as crianças jogaram
amendoins para mim.
Ipswich, Inglaterra, 1963:
Logo
o mundo parou de desmoronar. Eu me virei até que bem. Não desmoronei também. Os
nossos amigos da ONU vieram recolher os destroços, limparam tudo, trouxeram
água, e tudo acabou até que bem. “Hoje estou tão feliz, faz sol, sinto como se
o mundo inteiro fosse uma fábrica de chocolate”, eu estava andando por aí com a
minha mochila nas costas, com o chaveiro de bichinho de pelúcia balançando com
ela, minhas panturrilhas grandes, indo a treinar; então, naquele dia, os
garotos me interceptaram.
São Paulo, Brasil, 1995: Uma Desobediência.
A
semente do mal estava plantada. A semente do mal estava plantada em mim.
Você
sabe a parte boa e a parte ruim de ser um idiota? A vulnerabilidade, é claro.
Sendo um, você pode ser facilmente oprimido e acorrentado, mas também pode ser
facilmente convencido a praticar o mal, a desobediência, o deboche e fálica
visão política ou “cegueira política”, se assim o queira.
A
planta que eu viria a ser crescida era exótica e nunca iria dar nenhum fruto.
Você sabe do que estou falando, não?
Ó
meu deus, como estive quieto por tantos anos. Como chutei a bola para fora do
gol. A treinar futebol e ter de aceitar aqueles garotos me insultando no
treino. Eu nunca pude responder porque há algo, algo dentro da minha boca que
me detém, detém a palavras mas: naquele dia, naquela quente dia eu teria uma
voz, foi o que eu pensei quando dei o sinal para o ônibus.
E
isso é um sonho.
Um
homem e uma mulher. Um homem. E uma mulher. Não eram bem as bíblias de bolso
que eram distribuídas nas escolas públicas nos anos 1990. Sim, fizeram isso.
Nesse laico estado. Nesse hipócrita estado. Nesse tolo estado. Nesse selvagem
estado. Até que não é estado, na prática. Bem, não eram as bíblias de bolso,
mas eram as mentes, as mentes daquela comunidade, daquela comunidade suburbana,
era meus pais, o homem da padaria. Um homem e uma mulher e se você não pode ser
um homem, então você só pode ser uma mulher e foi como eu pensei que eu deveria
ser uma mulher, ou me tornar uma aos doze, entende?
Um
homem árabe? Um homem árabe ensinando catecismo? Um homem árabe ensinando
catecismo para crianças? Soa estranho, mas não soa estranho desde que esse não
é um estado, mas habitat do homem neolítico, talvez. Pedofilia não soava assim
tão mal porque eu sabia o que era o sexo aos doze e eu queria muito, mas muito
ser tocado por aquele homem árabe professor de catecismo.
E
isso é um sonho.
Desculpe,
sinto muito desapontar todos vocês. Mas não rolou. Pois eu era um freak na essência e para mim estava ok
morrer naquele momento. Pois eu estava apenas apaixonado por aquele homem e eu
podia fazer qualquer coisa por ele, o que ele me pedisse. Além de ser um
idiota, eu era um adolescente e é assim que os adolescentes amam.
Homem
árabe: Tem certeza que você quer fazer isso?
Eu:
Tenho.
Quer
saber? Não há mesmo razão para alguém fazer algo assim. Assim como não há
explicação lógica para o amor, se você pensar racionalmente. Eu já andava meio
triste desde o meu aniversário em onze de abril, quando meu pai passou o dia
fingindo que não era meu aniversário e quando eu perguntei sobre meu presente
ele respondeu, rude como sempre, para que eu não o perturbasse e me deu
dinheiro para que eu comprasse a droga do presente, e a pior parte disso tudo é
que eu de fato comprei o presente. Eu era uma criança imbecil capitalista e
materialista, do contrário eu deveria ter dito para ele enfiar aquele dinheiro
no cu. Ele quebraria meu maxilar, mas ok, é assim que se aprende a se expressar
de acordo com o que se pensa e o que se acredita, mas eu não era capaz de
pensar e/ou acreditar naquela época. E também eu fiquei tão tocado pelo que
aconteceu em Oklahoma City dias depois que eu...
Bem,
se a última refeição da sua vida, no corredor da morte, não pode custar mais do
que vinte dólares então por que eu deveria ter dinheiro para gastar no
aniversário, não?
Sim,
entrei em um desses ônibus cheios de São Paulo com o colete de bombas e matei
um monte de gente como prova de amor ao homem árabe e de ódio ao estado, seja
lá o que isso signifique.
E
isso é um sonho.
Ipswich, Inglaterra, 1983: Um aniversário.
Uma segunda
Julia, ouvindo Joan Jett o tempo todo, trancada no quarto, me ocorreu. Segunda-feira,
o pior dia para um aniversário, estava a chegar e na sexta-feira antes, Julia
decidiu recusar a fútil festa de aniversário que ela tem todos os anos.
Tocariam Cindy Lauper na festa, tocariam alto e isso não é o pior, mas as
primas, as cafonas, dançando ao som. Ok, certo, não certo, bem dizendo, e seu
eu não aparecer na minha própria festa? Vou para um hotel pequeno, vou comprar
um bolo de chocolate branco pequeno para eu só; sim, pois minha mãe não gosta
de bolo de chocolate branco e ela é tão egoísta que escolhe o sabor do bolo
todos os anos. Além disso, ela não sabe fazer um bolo bonito. Lembra-se do meu
aniversário três anos atrás? Ela fez um bolo tão feio que as meninas da escola
até tiraram fotos dele, e fizeram bullying
comigo por causa daquele bolo por um ano, tiraram até fotos de mim soprando a
vela. Além do bolo, vou comprar a cerveja cara que eu gosto, só para eu só,
melhor do que ter de tolerar meu pai embebedando-se com litros daquela cerveja
barata que parece água para mim, como vodka parece água aos russos e. Ah, sim,
eu estava quase esquecendo de dizer um detalhe muito importante sobre mim: Sou
heterossexual.
Deixe dizer um
pouco sobre mim: Algumas vidas atrás eu sequer podia imaginar, mas agora eu me
vejo como uma parte de um mundo perverso e feminicida, onde o cheiro de toda a
nossa massa vaginal chega ao meu nariz como nunca. Assim, eu observo e admiro
algumas mulheres que são estranhamente, desafiada mente vivas. Nossa tola
cultura de compartilhamento de informação de tinta de cabelo começou a imprimir
em mim a imagem de uma dominatrix – uma figura devorante que ri do casamento, ‘da produção masculina independente de
cadeiras e da produção feminina de bebês’.
Mais:
os desencontros e os infortúnios do amor ou da foda; ou amor e foda, não fazem
de mim uma pessoa que odeia mais a vida, mas uma pessoa que se odeia ainda
mais. Agora que estou completamente sozinha e ok, sinto falta de mim mesma
quando eu era completamente humilhada pelo meu amante, um idiota. Eu coleciono
feridas nessa vida medíocre que tenho levado por anos. Só tenho ressentimentos.
É
o vício. O que há de se fazer? Fui durante todo o caminho pensando o que eu ia
escrever na minha placa do protesto das feministas. A vadia. A vadia não vai
pensar numa frase melhor que a minha dessa vez, não dessa. Eu odeio a Cindy
Lauper, puta que o pariu!! Pensava eu no momento em que prestava uma felação a
um homem, no carro, no encostamento da estrada. É o vício... O que há de se
fazer?
Minha prima Martha vai á
minha festa de aniversário, claro. Martha, a católica. Trouxa. Sei que foi ela.
Me mandaram uma carta, com um nome de remetente qualquer, mas sei que foi ela.
Dentro da carta havia um papelzinho escrito ‘Hipócrita’, nada mais, veja se
pode... Que ódio, fiquei até com febre. Veja bem, por essas e outras eu tive
uma brilhante ideia e resolvi ir á minha própria festa.
Meus
poucos amigos, eles me dizem o tempo todo que devo ser feliz, e eu não consigo
fazê-los acreditar o quão triste sou, e o quanto estou desapontada e
decepcionada com a vida. Eles não conseguem me levar á sério, não conseguem; e
eles dizem ‘Você nunca dá festas, Julia’.
A
razão disso é muito simples: festas sempre me deixam doente do estômago. O dia
seguinte me traz o início de uma sequência de dias nada festivos, e nem mesmo
me pergunte “A constante busca por dias festivos me faria doente para sempre”.
Convidei todas
as garotas e não me opus a minha família.
‘Esse
é o seu vestido de domingo!’ minha mãe disse, referindo ao vestido azul claro
florido que usei uma única vez, eu acho, e também acho que foi na
segunda-feira, não no domingo que usei. Pois bem, eu nunca vi tanta felicidade
antes em alguém. Dentro daquele vestido, eu estava dizendo sim para ela depois
de tanto tempo de desaprovação, desacordo. E também eu estava trazendo amigos
para casa, opondo-me á minha natureza de nunca trazer qualquer tipo de
felicidade para casa. Até minha carga falsa e cínica não estava comigo: eu não
estava usando batom.
A
mãe, secretamente: ‘Como esse vestido engorda a Julia... Eu não havia reparado
antes’
O
bolo:
-
Choc
-
Essa massa já com essência de morango... hummm
-
Chocolate br
-
Olha o tamanho desses morangos para decorar
-
Chocolate branco!!
-
Essa calda caramelizada vai harmonizar tão bem com esses morangos e
-
Por que não coloca uma banana e dois ovos em cima do bolo também? Palhaça! –
esbravejou Julia deixando a cozinha.
A
mãe, pálida. Pálida ficou. Nunca tão pálida.
***
Começou
o inferno. Chegou um, dois, os tios gordos, essa formalidade conservadora que
detesto. Os gordos com olhos gordos para a minha circunferência abdominal. Sim,
estou gorda mesmo, mas vocês não vão dizer, certo? Melhor passar a semana
seguinte comentando, mas não vai ter semana seguinte, seus leitões! Ah! A
Martha, claro que ela não iria faltar.
A
política.
Ai, ai, quando
é que o I.R.A. vai jogar uma bomba na Margaret Thatcher, hein?
Martha:
‘Ridícula... Que tipo de gente simplesmente se senta em uma cadeira para ler
jornal durante a própria festa de aniversário? Com todos os amigos e a família
para dar atenção?’
A
mãe interviu:
-
Já tomou seu antidepressivo hoje, Julia? A que respondeu:
-
Já foi á puta que o pariu hoje?
A
Cindy Lauper.
Eu
sabia! Sabia que a filha de puta da Martha ia pedir para tocar essa merda. Caiu
uma lágrima quente na minha bochecha, não pude evitar, mas. Pois dance, dance,
vá explodir de alegria.
Alegria
mesmo é o meu primo safado usando a pélvis para dançar esse sonzinho ridículo.
Só não vou chupar lhe a piroca porque ele vai querer ficar me pegando, pegando
na minha circunferência abdominal, especialmente; e especialmente hoje, isso
não será possível, do contrário... Sim, do contrário ele vai perceber o colete
com as bombas que eu coloquei debaixo do vestido e está quase na hora de
detoná-lo. Na hora de cortar o bolo, claro.
E
agora, esse é seu palco, esse é seu público, essa é a sua hora e não e não é só
a hora do seu aniversário, Julia. Em frente á mesa, eu olhei para aquela
combinação lamentável de seres humanos e anunciei que faria um discurso.
Parabéns
a você. Parabéns a você, mulher inglesa. Que segurou a barra da economia na
primeira guerra mundial com o trabalho remunerado enquanto os homens rumavam a
perder a cabeça. E agora?
-
Ah, discursinho feminista de novo, não! Disse a desinibida Martha.
A
réplica veio em seguida:
- Você só está
usando essa calça enfiada no rabo por que alguém enfiou a cara na sociedade na
época do sufrágio lá pelos anos de 1910 e
Martha
cruzara os braços, batera os pés. ‘Vaca’, pensara.
E
o episódio da primeira guerra em especial, serviu para nos mostrar que as
transformações na sociedade só são conseguidas com força, luta, derramamento de
sangue e
E
mulheres de atitude com a Cindy Lauper!!! – Gritou Martha por deboche.
Eu
pretendia continuar o discurso, mas não me contive em detonar o colete de
bombas naquele mesmo momento ao que me subiu o sangue de uma forma que não pude
evitar.
Todos
na festa morreram. Até alguns vizinhos. Todos os policiais com chapéus
engraçados daquela pequena cidade inglesa foram até lá, e policiais com chapéus
engraçados de cidades vizinhas foram lá para ver também e
Bem,
não virei uma estrela, de qualquer forma. Contudo, você sabe qual é o singular
talento de Julia? A arte de não brilhar.
Aquele foi o
dia em que eu esperava me tornar uma fada no céu, mas não foi bem assim.
Pior
do que nascer de novo, foi crescer.
Você pode ter
dois finais se você quiser.
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