2 de set. de 2022

AU CRACK


    Nessa Guiné Bissau, nesse Zimbabwe Ocidental, eu já estava vacinado. Quem acaba no crack, acaba ator de metrô. Um gesso eterno para uma perna que não melhora nunca, mães usando crianças alegando falta de leite, gente alegando desemprego pois se assim for metade do vagão pode levantar-se e mendigar também, pedem sempre o mesmo, qualquer ajuda, uma fruta, uma bolacha, eu queria dar outro tipo de bolacha a eles, cinco centavos. Quem anda com frutas e bolachas no metrô? E quem cai no golpe, tem vergonha de dar só cinco centavos.


    Daí o país atravessou a linha da pobreza de novo, daí milhões de pessoas passam fome hoje. Dias atrás, um homem me parou na rua, na Brigadeiro Luís Antônio, disse que veio de Curitiba, que era arquiteto, logo soltou um "bah" para mostrar o sotaque, mostrou seus desenhos e disse que estava há três dias sem comer. O primeiro pensamento que me veio foi "Como alguém se despenca de Curitiba para cá sem recurso a ponto de acabar passando fome?". 

- Estou sem dinheiro, só uso cartão

- Você pode comprar alguma coisa aí no mercado mesmo

    Fiquei com medo de ele roubar o meu cartão e inventei algo para me livrar dele.

    Se fiquei chocado? Tocado? Muito. Fome é calo difícil de aguentar.


    No metrô, há poucos dias, um rapaz sentou-se do meu lado e disse que estava desde as oito e meia sem comer, já era noite. Até que comecei a pensar, esse homem não parece fraco, é difícil, mas há onde encontrar comida. O arquiteto, estava gordo, não parecia alguém com fome e por que logo eu teria que matar a fome dele? Será que aqueles desenhos eram dele mesmo. Fome virou um belo argumento para arrumar dinheiro para comprar crack.


Enquanto há fome, há crack.


XXXX


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