39ª mostra internacional de cinema de são
paulo. ah, a mostra. um velho amor. é quando compenso um ano inteiro de filmes
ruins, de poucos filmes bons. vejo mais filmes nesses quinze dias de mostra do
que no resto do ano (em um ano comum). acho que não só eu. antes de ontem, domingo, eu esperava ver o
islandês “pardais” ás 21h45, mas disseram que os ingressos esgotaram ás 15h00. é bom que tanta gente queira ver um filme
islandês no domingo ás 21h45. é ruim que eu não tive sorte de conseguir. mas o saldo é bom, é bom saber que vivo em uma cidade onde há sessões esgotadas
para filme de arte. dei com a cara na porta também para as sessões de “pervert
park” e “a bruxa”. este último, parece que a intensa procura não se justificou,
pois não ganhou prêmio nenhum. eu não consegui ver os vinte filmes que costumo
ver. estou com dó de gastar dinheiro por causa da crise, por causa dessa
histeria coletiva. além disso, ando bastante baixo astral depois que parei de
treinar atletismo em outubro, a temporada acabou e decidi tirar umas férias, volto a treinar só em março do ano que vem. tenho tido dores também. por isso, é melhor ficar
na cama com a minha gata do que pegar o metrô e ir até o cinema. vi apenas
treze filmes. como ando cansado, preferi fazer um top five ao invés de um top ten. ando tão cansado que dois dos resumos estão na postagem anterior.
01-THE
PARADISE SUITE (HOL, 122’, 2015, Dir: Joost Van Ginkel)*****
sinopse:
as histórias de seis pessoas que se cruzam e
influenciam as vidas umas das outras de forma irreversível: jenya, uma jovem
búlgara; yaya, um homem africano; ivica, um criminoso de guerra sérvio; seka,
uma mulher bósnia; lukas, um pianista sueco; e o pai dele, stig.
o que dizer do único filme da mostra que me fez
chorar? bem, talvez começando dizendo que não é o fato de que a frase “não
venha para o nosso país, strangers keep out” seja a mensagem e o recado de
muitos dos filmes deste ano. o que me fez chorar foram os conflitos humanos. para dois dos personagens, estrangeiros, a jovem búlgara e o homem africano, a
holanda foi muito, mas muito cruel. eu aprecio, aprecio esse tipo de mensagem. o sonho europeu, o sonho americano. detesto o pesadelo que é o país em que
vivo, a cidade em que vivo, mas é de onde eu sou, é o que eu sou, é aqui que
devo ficar, sempre tive, tenho essa convicção. e a guerra civil? nós aqui não
temos a noção do que é isso, por bem. o quão cruel é a guerra civil. e a
educação, gente? e a educação? ainda há espaço para o garoto pianista que sofre
bullying na escola e o pai rígido e frio, muito europeu. e o futuro da
humanidade? o que dizer de Ivica que é um exemplo do homem mais perverso
possível, dando banho em uma criança, mimando uma criança, seu filho, gente
como Ivica se reproduzindo. o final, com o pai rígido pedindo desculpas ao
filho e a garota búlgara reencontrando a mãe, me fez chorar copiosamente. sim,
ao comparar com filmes com estrutura de roteiro parecida, eu gostei mais desse
do que gostei de “três quintais” ou “magnólia”. a minha melhor experiência
dessa mostra, sem dúvida.
02-DOENTE (bolesno, CRO, 2015, Dir:
Hrvoje Mabic)*****
bolesno é um documentário que conta a terrível
história de ana dragicevic, uma garota croata que ficou presa em uma clínica
para dependentes químicos sob falsa alegação de ela ser viciada, quando na
verdade estavam a tratando por sua homossexualidade. ela foi presa lá aos 16 e
ficou por cinco anos. ana processou a médica responsável por sua internação e
também seus pais que a internaram. de acordo com o documentário, o caso ficou
razoavelmente famoso na croácia. é difícil encontrar na internet algo sobre ana
que não esteja em língua local, então não pude checar exatamente quando se deu
a internação, mas posso supor que aconteceu no começo dos anos 2000. Sim, no
começo dos anos 2000 eles ainda faziam isso com homossexuais, quase o fizeram
comigo e. meus pais 'descobriram' a minha homossexualidade no ano de 1999 ou
2000, não me lembro exatamente. eu tinha 15 ou 16. eu senti aquela 'lepra' que
o escritor chileno pedro lemebel diz sobre a homossexualidade em um de seus
mais memoráveis poemas. sim, pois meus pais me trataram como se eu não
estivesse apenas doente da cabeça, mas da pele também. éramos uma família bem
porquinha, mas quando minha mãe descobriu minha homossexualidade, ela me deu
uma toalha só para mim e um sabonete só para mim. todos na minha casa usavam o
mesmo sabonete, que ficava lá na saboneteira até acabar. lá nunca se controlava
quem usava as toalhas também, minha mãe costumava colocar duas toalhas grandes
no box e nossa família ia usando até que minha mãe julgasse que elas estivessem
sujas e as colocava para lavar. mas quando minha mãe soube, ela foi bem clara
em dizer que não era para eu usar aquelas toalhas, as do resto da família. ela
me deu uma só para mim. não muito tempo depois, meus pais me levaram ao
psicólogo alegando que eu estava 'muito nervoso'. na verdade, o que eles
queriam é o que psicólogo 'curasse' minha homossexualidade. claro que não
funcionou e naquela mesma ápoca, eu comecei a sentir sintomas de depressão que
permanecem comigo até hoje, aos 31. o caso de ana dragicevic é muito mais
desumano que o meu, é claro. quando o pai dela a visitava na clínica, ele se
esquivava quando ela tentava tocar suas mãos. quando ana finalmente conseguiu a
liberdade, o diretor acompanhou ana até a casa de sua mãe. ela abre a porta, vê
ana e bate a porta. depois de anos de terapia e grave depressão, uma muito mais
grave do que a que tenho, ana fica sabendo que sua mãe teve um ataque cardíaco.
ana foi visitar sua mãe no hospital e ela chorou muito quando viu a filha. ana
também escreveu uma carta para o pai, dizendo que não deseja nada de ruim para
ele e que ela se lembra com carinho do tempo em que passou com ele até ter 16
anos de idade, uma época em que ela teve a sensação de ter sido amada. eu
também tive esse 'buraco negro' na minha vida. minha mãe tornou-se budista há
uns 5 anos atrás e se tornou uma pessoa mais fácil, meu pai também. agora eles
me tratam bem, mas quando eu era adolescente, quando mais precisei deles, eles
me viraram as costas, eu passei vários anos tendo a sensação de que ninguém no
mundo me amava. parece que os pais começam a se arrepender do que fazem com os
filhos gays adolescentes quando eles já tem mais de trinta anos. mas o passado
nunca está morto, não é sequer passado.
03-GAROTA NEGRA (La Noire De... SEN, 65’, 1966 Dir: Ousmane Sembene) *****
Sinopse:
diouana é uma jovem senegalesa que é levada a antibes, na frança, por um casal francês. ela pensa que será governanta das
crianças, mas é forçada pelos patrões a trabalhar como empregada, sem receber
salário. diouna logo percebe a discrepância entre a realidade de sua vida na frança e seus antigos sonhos sobre o país europeu.
bem, muito antes de anna muylaert, lá em 1966,
no longínquo senegal, já se tocava neste assunto com um olhar, com uma crítica,
com um questionamento exemplar. o fato de ser uma garota africana indo
trabalhar na frança toca mais explicitamente na ferida da escravidão, que em
1966 certamente era um assunto bem mais fresco. é o mesmo que acontece com as
mulheres nordestinas hoje, na verdade. elas saem do nordeste e vem a são paulo
cheias de sonhos, para então acabar escravizadas. a diferença é que as últimas
citadas e a protagonista deste filme, vão trabalhar na casa das patroas por
gosto. pois bem, a discrepância do que é acertado com o que é praticado pela patroa neste filme é um
conflito tão atual que é discutido hoje em dia no nosso país no que diz respeito
a regulamentação da profissão das domésticas. além disso, vemos aqui um choque
da expectativa do serviço e da relação patroa-empregada: diouana varrendo a
sala de estar com um dos vestidos dados pela patroa e de salto alto. logo a
patroa se irrita ao vê-la limpando a casa vestida assim “você não vai para uma
festa, não deve se vestir assim”. podemos perceber que diouana, no alto de sua
inocência, não se sente inferior a patroa, e entende que mantém apenas uma
relação de troca justa, onde ela presta o serviço e recebe o salário por ele. dessa forma, por quê não podia usar os vestidos doados pela patroa e sapatos de
salto enquanto trabalha? não, não podia. tanto naquela época quanto hoje em
dia, as patroas fazem questão de deixar claro que há sim uma superioridade em
relação as empregadas. tanto que as empregadas de luxo de hoje em dia ainda
usam uniformes, brancos ou não. ainda se vê em novelas da rede globo, ainda se
vê na vida real. além da discrepância das obrigações das empregadas em relação
ao que foi combinado, além da necessidade de uma regulamentação que apenas hoje
começa a se dar, há o fato de que muitas das empregadas moram no trabalho, na
maioria das vezes estão em uma cidade onde não conhecem ninguém e daí a
sensação de escravidão, onde o pouco ou nenhum tempo livre dificilmente é
revertido em lazer. neste filme, diouana diz a si mesma “o que é a frança? é um
buraco negro?” pois é o que ela vê da frança da janela de seu quarto quando o
dia de trabalho termina. diz a si mesma porque depois que ela chega a frança,
ela diz pouquíssimas palavras. isso porque os patrões não falam com ela senão
para lhe dar ordens ou para reclamar de seu serviço. no final, nem a patroa nem
a empregada estão satisfeitas uma com a outra, e a crescente tortura
psicológica imposta pela patroa culmina em um final de cortar a garganta,
literalmente. eu pessoalmente, jamais teria uma empregada em casa, por mais
rico que eu fosse ou me tornasse.
04-PIXADORES (Tuulensieppaajat,
2014, FIN, Dir: Amir Escandari)*****
este nem estava na minha programação. pagar
para ver um bando de moleques finlandeses pixando por aí? jamais. a palavra
'pixar' ainda nem é reconhecida como palavra. porém, quando na hora em que me
deu muita vontade de ver um filme em determinada hora e abri a sinopse deste
filme, percebi que é um filme finlandês, mas sobre pixadores paulistanos. e que
também é parte colorido e parte preto e branco. bem, fiquei curioso para ver
como seria o olhar de um diretor finlandês para esses moleques brasileiros pixadores
alienados. pouco antes da sessão, no espaço itáu da augusta, tinha gente de
comunidade entrando com bebida alcoólica na sessão (fica um alerta para o
pessoal da mostra e do espaço itaú). olha, detesto esse povo de
comunidade, acho desnecessária essa postura agressiva deles. o motivo desse
tipo de atitude estava claro logo nos primeiros depoimentos: “nós gostamos do
ódio que despertamos na sociedade”. o filme é um documentário sobre quatro
pixadores paulistanos, todos moradores de comunidade, e que foram para berlin
mostrar seu “trabalho” por conta de um edital da vida. eu adoraria saber quem
foi o babaca que mandou esses quatro bandidos para berlin com o dinheiro dos nossos impostos. sim, bandidos, visto
que pixação ainda é o mesmo que “vandalismo” em nosso código penal, portanto é
crime. se é crime, quem pratica é bandido, certo? certo. então vamos lá: o
filme acompanha as aventuras desses marginais escalando prédios e sujando-os.
três deles, sequer sabem escrever o próprio nome. um deles, que é uma espécie
de líder do grupo sim, é alfabetizado e um 'pseudo-culto', na hora em que o
filmam na cama lendo nietsche, me ecoa uma frase ‘quando um babaca decide que
quer ser culto e espertinho, a primeira coisa que vai ler é nietsche’. quando
um dos moleques, que já tem um filho, é questionado sobre o que quer da vida,
ele responde: “ meu sonho é ter uma casa”. dá vontade de gritar em direção a
tela a seguinte frase ‘e você gostaria que chegasse alguém e pixasse a SUA
casa?’. esse é o conflito principal da primeira parte do filme: um cara
‘pseudo-culto’ que acha que sujar a parede dos outros é “arte”, se junta a três
analfabetos e os fazem pensar que também estão fazendo 'arte', que estão
fazendo 'um trabalho', que estão 'transgredindo'. eles nem sabem o que estão
fazendo, não sabem nem escrever o próprio nome. a verdade é que
esses moleques sem educação só o fazem, porque gostam e porque acham legal
serem odiados pela sociedade, a velha “vitimização”. eles acham que eu e você,
que moramos em regiões centrais em apartamentos (com muito esforço, inclusive;
eu mesmo vou acertar o que devo de aluguel só no dia 15), somos culpados por
eles morarem na comunidade. cara, eu não tenho culpa, não tenho mesmo, pago uma
caralhada de impostos. agora, se os políticos pegam o dinheiro e enfiam no cu,
não é minha culpa, não mesmo. legal, chega a notícia que os pixadores foram
contemplados no edital e vão para berlin. o 'pseudo-culto' diz: 'Vamos lá
mostrar para eles nossa arte política!'. daí o analfabeto responde “se é louco...”
claramente, ele não faz a menor ideia do que é 'arte política'. bem, lá vão os
pixadores para berlin com o dinheiro dos nossos impostos. daí, acontece o ápice
do filme: quando os curadores da tal bienal de berlin os convidam para um
evento onde supostamente devem mostrar a sua 'arte'. quando chegam no local, se
deparam com paredes brancas de madeira destinadas ao 'trabalho' das pessoas. no
local, os curadores falavam sobre o que era pintar paredes utilizando tinta
spray para fazer desenhos, pinturas, ou qualquera. não, eles não saem por aí
escalando prédios públicos e sujando-os. pois então o
'pseudo-culto' diz que 'não é esse o nosso trabalho', e 'não viemos
aqui para pixar essas madeiras brancas'. o que fizeram os quatro contemplados
então? saltaram as madeiras, pixaram o prédio público e tombado que tinha atrás
delas, jogaram tinta no curador do evento e a palhaçada terminou com a polícia,
claro. falando de cinema, achei a atitude do diretor extremamente corajosa em
fazer o trabalho. E u não acho nem que ele aprove o que esses marginais fazem,
mas ele quis mostrar, quis dizer que aquilo existe, em um lugar onde ainda
existem pessoas que não tem educação suficiente sequer para escrever o próprio nome
e acham que são artistas, onde gente que tem uma educação básica e ruim pega um
livro do nietsche e sai por aqui achando que é um gênio, achando que está
arrasando no rolê. eu dei cinco estrelas. pela coragem do diretor, pelo
conflito, o documentário é muito bem feito, muito bem filmado, a fotografia em
preto e branco está linda (só a parte filmada em são paulo está preto e branco,
também concordo que são paulo só deve ser filmada em preto e branco). quando
acabou o filme, bati palmas e saí apressado. a sala do espaço itaú da augusta
estava lotada, tinha até gente em pé. o que será que aconteceu depois? será que
os caras pixaram a sala?
05-NÓS SOMOS JOVENS, NÓS SOMOS FORTES (wir
sind jung. wir sind stark, GER, 2014, 116’ Dir: Burhan Qurbani) ****
sinopse:
em agosto de 1992, três anos após a queda do muro de berlim, protestos anti-imigrantes aconteceram na cidade de rostock, no
leste alemão. o alvo dos ataques era um abrigo para refugiados na periferia da
cidade, que foi incendiado. o filme reconta esse acontecimento acompanhando um
dia na vida de três personagens: lien, uma vietnamita que vive na alemanha; stefan, jovem entediado e raivoso que participa do tumulto; e martin, político
ambicioso e pai de stefan.
já vi muito e sobre xenofobia no cinema, mas
não consigo me lembrar de ter visto algo tão cruel, tão amargo, tão real. mais uma
valiosa propaganda anti imigração. stefan e o pai (a juventude raivosa,
alienada e o político que não sabe bem lidar com as divergências entre suas
convicções políticas e o que o filho está “se tornando”), acho que não são os
personagens principais do filme junto com a garota vietnamita, ela é o
personagem principal, a vida dela e o contexto social e político no qual ela
está envolvida é que é o grande conflito do filme. o evento histórico em si é
uma demonstração cruel de xenofobia como muitas outras na europa, claro que
chama muito a nossa atenção, pois é inimaginável algo assim no brasil (tente
imaginar uma galera indo até o bairro do bom retiro para incendiar um prédio habitado por
bolivianos como se fosse um evento, com cerveja e comida, como um protesto
legítimo). aqui não há esse tipo de partido, as pessoas odeiam umas as outras
quietinhas, e não acho isso ruim. voltando a garota vietnamita, ela quer
continuar na alemanha, ela quer o visto permanente de trabalho, mesmo sendo
claramente odiada e hostilizada. talvez seja o otimismo extremo, próprio desses
asiáticos, mesmo saindo a rua com crianças a chamando de “china” (uma forma
pejorativa de se referir a asiáticos na alemanha), ela sempre continua sorrindo,
porque ela tem certeza de que tem o direito de estar onde está, tem a certeza
de que é uma cidadã do mundo, de que é um ser humano, acima de tudo. e o filme
termina assim, com essas duas diferenças de atitude: a pedra na mão da criança
alemã e o sorriso da garota vietnamita.
é bem provável que eu passe a postar com pouquíssima frequência, pois retomei o projeto do meu quarto livro e tenho pretensões de terminá-lo.
XOXO.