12 de jul. de 2021

UM TEXTO ACADÊMICO PARA SAMUEL



 Isso é guerra. Não a segunda guerra que tanto incomodava o Drummond, mas isso é guerra. Drummond, em sua época, em que essa guerra não era guerra, pois quando não há defesa, não há luta, é genocídio, e Drummond, à frente de sua época, nos dava o poema “Rapto” que compõe o livro “Claro Enigma”, não é dessa vez que vou poder analisar “Rapto”, mas é dessa vez que posso introduzir o que significa esse rapto.

O poema citado, todos bem sabem do que se refere. Hoje evoluiu da escuridão de não poder mostrar suas cores, quando o mundo se levantava em fumaça para uma luta do monocolorido contra o colorido. Faz dois dias. Samuel foi espancado até a morte apenas por ser gay. É atestado que sete homens o espancaram, mas investiga-se que podem ter sido doze, quando um só era o suficiente. Me parece pouco resistível não citar Clarice Lispector e seu conto “Mineirinho”, ele, o protagonista foi assassinado com treze tiros de metralhadora por seus crimes. “Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.”¹

Os assassinos não sabem, não enxergam o que é o erro. O erro de Samuel, ele bem soube, enquanto ouvia um não sei quanto de proferimentos da palavra “Maricon”, um termo pejorativo para a palavra homossexual. Talvez ainda teve tempo de se perguntar: “Estou mesmo na Galícia?”. O erro de Samuel foi existir, como uma baleia existe nos mares do Japão e morrem, morrem, mesmo com leis de proteção. A vida de uma baleia vale mais do que a de um LGBT e se não discutirmos, continuar lutando pelo direito de ser mais suscetível a violência e assassinato do que uma baleia japonesa, então não sei o que estamos fazendo aqui, na Faculdade de Filosofia, Letras e ciências humanas da USP, onde há mais LGBT por metro quadrado do que em qualquer faculdade do Brasil e não, não é inadequado introduzir um texto acadêmico com devidas citações de heróis da nossa literatura com o mundo, a realidade, os erros e as cores que nos rodeiam.

Porém, há dois dias acendeu-se uma luz, uma nova vela. Durante o Campeonato Europeu de futebol masculino que acabou ontem, houveram diversas manifestações pró LGBT em vários lugares da Europa, praticamente a Europa civilizada inteira, uma resposta à uma lei aprovada na Hungria durante o campeonato que proíbe que o assunto homossexualidade seja citado nas escolas primárias do país, a mesma lei que já existe na Rússia. Na partida em que a Alemanha recebeu a Hungria em Munique, uma maioria massiva dos torcedores foram ao estádio com as cores do arco-íris, todos os principais estádios da Alemanha foram coloridos com as cores do movimento.

Mas, exatamente na Europa, onde crimes de ódio contra homossexuais não são comuns, a sociedade odiosa, genocida mostrou seus músculos na Espanha. É um pouco difícil combater músculos com cores, mas as cores não morrem.

¹(Fonte: http://www.ip.usp.br/portal/  , do livro: Para não esquecer. São Paulo: Ática, 1979)

XOXO

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