Sob a luz que não nos alcança
Há uma luz
continuamente presente e tão ofuscante que traz consigo sua própria escuridão, uma
luz circundante, mas que não nos alcança no comum dos dias, no rastro do
cotidiano. Perceber essa luz é precisamente ser contemporâneo, algo raro, como
nos diz Agamben, porque enxergá-la “é, antes de tudo, uma questão de coragem:
porque significa ser capaz de não apenas manter fixo o olhar no escuro da
época, mas também perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós,
distancia-se infinitamente de nós”. É essa luz e esse escuro que a leitura de O tiro de um milhão de anos, romance de
Hugo Guimarães, evoca .
À primeira
vista, o mundo criado pela narrativa sugere uma paisagem para além do real, um
daqueles mundos alternativos que surgem, com maestria, vez por outra, no cinema
e na literatura, como a futurista Los Angeles, de Blade Runner, para citar apenas um exemplo. Entretanto, nos
entreatos da leitura, o leitor vai percebendo, não sem algum horror: é deste
mundo, é deste tempo no qual vivemos que parte a narrativa. Um mundo em
decomposição, atravessado por severas perdas de sentido, por uma apartação
desagregadora entre o ser humano e instâncias poderosas como a beleza, a
natureza, o sonho.
Na travessia
por São Paulo, essa megalópole que é uma mãe com colo de arame, mas ainda
assim, uma mãe, a personagem Corvo, uma mulher de olhos azuis e alma
despedaçada, oscila entre o voo e a queda, o amor e a repulsa pela figura
materna, pela própria vida. Essa personagem principal, cuja agonia se desnuda ao
leitor, é interessantíssima. E cabe aqui, ainda que brevemente, recuperar a
mitologia do corvo, figura polêmica e ambígua que, como trickster,
herói/vilão/trapaceiro, se situa no limiar entre dois mundos, o terreno, e o
espiritual. Sobre o Corvo, Claude Lévi-Strauss comenta: “o pensamento indígena
situa o Corvo no limiar entre duas eras (…). Já não se pode fazer qualquer
coisa. O trickster
descobre isso — muitas vezes ao custo da própria integridade”. E é essa a
trajetória da personagem, atravessar limiares, estando ela mesma no limite:
“Desisti de cometer suicídio ao pular na linha do trem desde que percebi que
trens são lentos demais”, diz ela, nesse romance que tem, na sua
experimentalidade, a possibilidade também de ser uma memorabilia ou, quem sabe, transformar-se numa carta de despedida,
esse estranho gênero epistolar de que faz parte os últimos escritos dos
suicidas.
Essas
referências me sugerem uma atualização/apropriação poderosas das narrativas
míticas. Os mitos, como se sabe, sempre serviram para explicar poeticamente um
mundo que, aos humanos, parecia excessivo: barulhento demais com seus trovões,
assustador demais em suas decomposições. Num estar contemporâneo fraturado por
perdas absurdas, vícios severos de estar na moda, novas formas de morte (como
os caixões de 50 metros quadrados vendidos pelas imobiliárias), Corvo, e a
escritura de Hugo Guimarães, surgem como elementos capazes de transitar entre
polaridades, atravessando os mundos, como um psicopompo num tempo em ruínas
mas, ao mesmo tempo ensinando que “atirar-se de um prédio não é a única forma
de um ser humano voar”. Ensinando como estar de olhos abertos para a luz
absurda do que chamam “contemporaneidade”.
Micheliny Verunschk
XOXO