7 de mai. de 2020

POESIA GAY UNDERGROUND REVISITADO

Resenha crítica feita pelo querido Daniel Manzoni de Almeira sobre o meu primeiro livro "Poesia gay underground: história e glória (2008, ed. Annablume)


A SUBVERSÃO DA MANCHA DO MAL NA POESIA DE HUGO GUIMARÃES

 Daniel Manzoni-de-Almeida1 GUIMARÃES, H. Poesia gay underground: história e glória. São Paulo: DIX editora, 103 p., 2008.

Na ocasião, eu pesquisava e tentava desvelar os principais símbolos do mal do preconceito pela orientação sexual representados nos textos de autores cânones do universo dos escritos LGBTI+. Tateando no escuro e experimentando o desconhecido dos escritos literários em blogs na internet – espaço típico dos muitos escritores contemporâneos – deparei com os escritos de Hugo Guimarães, em especial, seu primeiro livro publicado de poemas: Poesia gay underground, de 2008. Na minha primeira camada da leitura os escritos de Hugo Guimarães, detectei a captura do subterrâneo do espaço literário LGBTI+ brasileiro (em especial de um homem gay) como forma de testemunho do sexo no escuro entre homens na regionalidade da cidade de São Paulo. Ultrapassando as demais camadas da leitura e ligando ao meu interesse de então – o mal na literatura – os escritos de Guimarães, em especial em seu livro de poesia citada, percebi o contato de uma experiência do autor com o pensar sobre a realidade do preconceito, com o aparecimento dos símbolos comuns do mal do preconceito quanto à orientação sexual dos sujeitos em seus escritos. No universo desse escritor aparece sua experiência com a linguagem no escuro e sujo, uma filosofia do dark room que passa a servir como uma potente maneira de falar, de forma subversiva e provocativa, sobre uma faceta da homofobia que é ancorada, no que entendo, e faço uma ligação simbólica com a “mancha do mal” em Paul Ricouer, o que torna Hugo Guimarães como um poeta da sinestesia gay. Hugo Rodrigo Guimarães (1985-), com assinatura de literatura como apenas Hugo Guimarães, é um escritor nascido no município de Guarulhos, em São Paulo, que até o momento já escreveu livros de contos, romance e poesia na forma de publicações independentes, além de 1 Doutor em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Ouro Preto – Brasil, com período sanduíche em University of Pennsylvania – Estados Unidos da América. Professor no Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – Brasil. E-mail: danielmanzoni@gmail.com.

VALITTERA – Revista Literária dos Acadêmicos de Letras ISSN: 2675-164X – V.1, N.2 – 2020 – Pág. 170 – 173

manter um blog literário2 no qual divide com seus leitores-seguidores suas produções. A inspiração literária de Guimarães é o “mundo underground” da cidade de São Paulo. Atualmente, o escritor é estudante da graduação de Letras, habilitação grego, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). O “mundo underground” que o autor adota e testemunha vai para além de lugares físicos, envolvendo as condições de vida. Situações de vida não tidas como nobres, regadas a pílulas de diazepan, a música e até a condição de atleta. Poesia gay underground: história e glória é o livro que reúne a primeira produção de poesia de Hugo e está divido em nove capítulos que reúnem as poesias produzidas de 2004 a 2007, que o poeta escrevia e distribuía independentemente, mão a mão, por bares, casas de swing, saunas, crossing-bar, rodas de amigos próximos. É para estes ambientes, conhecidos no universo LGBTI+, que a poesia de Hugo nos leva e convida para uma viagem sinestésica e simbolista do sexo gay – entre homens. Este escrito de poemas faz encher de sensações, do toque da pele, do gosto do sexo entre dois homens, do prazer do sexo proibido, do sexo no subterrâneo nos lugares escondidos, codificados de prazer do sexo explícito em lugares públicos, temas que nos achados da literatura LGBTI+ têm sido reorganizados de forma a atender o mercado editorial, a lógica do capital rumo à tendência heteronormativa, como discutido em Maia (2015). Porém, Hugo não deixa sua viagem sinestésica para si, é por meio da sua poesia que ele testemunha o mundo subterrâneo e o glorifica. Escuridão, pode ser noite ou dia, tanto faz, o importante é a ausência de luz, é dentro de casas escuras, labirínticas, propositalmente, com paredes pintadas de preto e feitas de madeira-tapume para ajudar a baixar ainda mais a luminosidade. Neste ambiente, a visão é o sentimento menos apelado. Tato, paladar e olfato são os mais requeridos e ovacionados nas descrições de Hugo. O tato, nas pontas dos dedos que escrevem e direcionam o caminho do testemunho do submundo, funciona como olhos do poeta e as palavras, como como mãos à frente do corpo, tateando, enquanto o olfato está com a atenção focada em encontrar cheiros particulares. Cheiro de suor, mas não qualquer suor: é suor de esforço físico, o que também não é qualquer esforço físico: é daquele que o líquido brotou de pelo menos dois corpos, e ali mais de dois corpos, às vezes, entrelaçados, corpos sem dizer nomes, anônimos, uns submetidos, outros submetendo. É cheiro de testosterona, que não é adocicada nem é amadeirada, que só se encontra nesses ambientes subterrâneos tão escuros, tão escondidos. É neste instante que a descrição do paladar entra na poética de Guimarães como a tradução do gosto das secreções corporais. Na poética de Hugo, o problema não é o falar delas, pois tudo é explícito: para se ter prazer, tem que conviver com elas.

2 Disponível em http://hugoguimaraesnoceu.blogspot.com.

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O medo dos outros em não descer na poesia subterrânea emergida por Hugo talvez seja esse contato com as secreções, com os cheiros que exalam na poesia, como em “Que vício longo que vício longo, baby sangue, esperma e catarro no mesmo lugar ainda estou vivo” (p.47). Os sons trazidos pelos poeta não podem ser esquecidos. Os gemidos da cena sexual, que podem ser abafados pela música norte-americana de Bob Dylan, amplificada pela batida eletrônica metalizada, fabricada pelo aparelho de música, remixada mil e tantas vezes e que invade o escuro dos subterrâneos. Ajuda a bater mais forte o coração e liberar o corpo para fazer poesia. É o momento em que detecto o auge da simbologia do mal na poesia de Guimarães: encarcerado no símbolo de tudo que não pode e não deve enquanto homossexual, que o atinge e é dissolvido e invertido e passa a ser o Bem, no símbolo de tudo que pode e deve ser enquanto gay. O mal, em forma de uso do corpo, é assumido por Hugo como história e glória. O poeta gosta do mal que lhe dizem ser mal. O mal para Guimarães é não usar o corpo para fazer o Bem, e, para poeta, o Bem é poesia como deve ser dita. O mal, ao contrário, é não acreditar no esperma como fonte da poesia, como em “Em poetas de esperma” (p.31). Sensações que Guimarães nos traz na voz da personagem – ou pseudônimo interno do livro – Travis Bates, um escritor, um possível nome fictício que pode ser dito na porta da boate, na porta da casa de swing, de sexo sado-masoqui, para evitar reconhecimento, um anonimato permitido. Entretanto, na poesia de Hugo não está nada escondido. Tudo está explícito. Não há constrangimento de dizer, porque falar explicitamente sobre o que fazer com o corpo não é o mal para o poeta. O mal para Hugo é não extrair beleza do corpo, do ato sexual. E é esta aqui a questão que interessa. Hugo, enxergando em Travis Bates, é como Sartre, que enxerga em Genet sua filosofia do existencialismo. Funde poesia e corpo como Bataille funde Sade ao prazer da destruição do objeto (BATAILLE, 1989). O mal em Hugo Guimarães é não aceitar a mancha como explicitada por Ricoeur (2013). A poesia de Hugo traz a mancha de uma vida vista como impura, explícita com seus desejos e prazeres. Enquanto aos olhos dos Outros dizem que é uma vida suja e manchada, para o poeta é uma vida limpa; tem a mancha, a nódoa, e ser sujo e com a nódoa é o Bem. O trabalho poético dele percebe o mal como algo externo, imputado, dado, incrustrado, mas ao contrário de tentar trazer, é não tentar limpar a mancha do mal que lhe imputam, é deixá-la exposta e ainda mostrar como ela é feita incentivando como manchar-se. A poesia de Hugo Guimarães é a favor da mancha do mal, pois é sua opção. Estar manchado o faz na inspiração da linhagem de Baudelaire e Rimbaud, os ‘malditos’. Há um poema em especial neste livro que nos traz a ideia da reversão do símbolo do mal posto pelo preconceito externo. O poema é “Poetas do esperma”. Nele, Guimarães faz uma releitura radical do poema “Procura de poesia”, de Drummond, do livro A rosa do povo,

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transgredindo o clássico poema, trazendo a luz o que é o mal em sua visão. A intenção do autor é clara: transgredir o poema tradicional, como se transasse com o poema de Drummond e trazer que poesia é feita com o corpo no ato sexual entre dois homens. A homossexualidade apontada com tons de mal, no sentido de um desvio da naturalidade, por Drummond, como uma “recusa do pasto natural aberto aos homens” ou “natureza ambígua e reticente”, no poema “Rapto”, em Claro Enigma (ANDRADE, 1998); anos depois da consagração da publicação destes poemas, e em tempos diferentes do discurso sobre a sexualidade, em Hugo a homossexualidade é assumida e explicitada. O corpo e o sexo não são encarados como sujos, mas o corpo, “manchado” pelo mal da homossexualidade antinatural dos caminhos dos homens – como levantado na tradicional poesia de Drummond – faz poesia. Podemos reler este poema de Drummond de Andrade na chave que o corpo não é, e também não deve ser, o motor da produção da poesia como exposto na “Procura da poesia”. Em A rosa do povo (1945), Drummond traz a expressão dos horrores de guerra e do nazismo da metade do século XX e o poema “Procura da Poesia”, em específico, remete à desesperança do fazer poesia com a realidade, diante do horror da guerra e do real social. Hugo, décadas depois, com a mesma massa de indagação, diante dos horrores da guerra contra as sexualidades dissidentes, reinventa esta mesma intenção, mas na subversão desta imagem do corpo colocada por Drummond para a produção da poesia. Para Guimarães, a poesia nasce do uso do corpo, nasce como um filho do sexo estéril entre dois homens, que a procriação, a criação é dada. Aquele corpo negado por Drummond é o corpo criado, via poesia, por Hugo Guimarães em um universo particular de símbolos, sensações e liberdades. Referências ANDRADE, Carlos Drummond. A rosa do povo. Ia ed. São Paulo: Compainha das Letras, 2012. ANDRADE, C. D. Claro enigma. 13a ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. BATAILLE, G. A literatura e o mal. Porto Alegre: L&PM, 1989. GUIMARÃES, H. Poesia gay underground: história e glória. São Paulo: DIX editora, 103 p., 2008. MAIA, H. T. A literatura gay é um cruising bar: reflexões sobre a literatura gay, o mercado e a obra de João Gilberto Noll. Revista Periodicus, n.3, v.1, p.183-199, 2015.
RICOEUR, P. A simbólica do mal. Lisboa: Edições 70, 2013.

Recebido em 27/10/2019. Aceito em 18/01/2020.

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XOXO

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